2022: 200 anos de dívidas sem contrapartida

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                      *Maria Lúcia Fattorelli

A dívida brasileira atinge patamares elevados e tem o custo mais elevado do mundo devido aos juros abusivos. A dívida chamada interna alcançou R$3,8 trilhões, em setembro/2015, e a externa, US$556 bilhões.

Dívida pressupõe entrega de recursos, contrapartida efetiva. Investigações da Auditoria Cidadã da Dívida e da CPI da Dívida Pública de 2009/2010 demonstram que essa contrapartida muitas vezes não existe.

Nossa primeira dívida, de 1822, ano da independência, corresponde a uma dívida de Portugal junto à Inglaterra. O dinheiro nunca chegou ao Brasil, apenas a obrigação de pagá-lo. Investigações atuais comprovam que dívidas são geradas por diversos mecanismos meramente financeiros.                                                                                                                                   

O instrumento do endividamento, que deveria significar o aporte de recursos complementares aos orçamentos públicos, tem sido usurpado pelo setor financeiro privado, funcionando às avessas: em vez de trazer recursos, representa contínua sangria de recursos públicos, que são drenados aos bancos. A isso denominamos SISTEMA DA DÍVIDA.
Para ilustrar, cabe mencionar as recentes parcelas de dívida interna gerada por prejuízos do Banco Central em operações de swap cambial, mera garantia de reposição da variação do dólar a bancos e empresas. Os prejuízos com essas operações, de setembro de 2014 a setembro de 2015, chegam a R$ 207 bilhões! Tal prejuízo tem sido transferido para a conta dos juros da dívida.

Outro mecanismo é representado pelas operações de mercado aberto ou “compromissadas”, do Banco Central, de quase R$ 1 trilhão. Tais operações correspondem à mera troca de recursos em poder de instituições financeiras por títulos da dívida. Correspondem à remuneração de toda a sobra de caixa dos bancos e estimulam a elevação das taxas de juros, pois os bancos não precisam se arriscar para emprestar ao público em geral. Só o fazem a taxas que podem atingir de 200% a 400% ao ano, impedindo o acesso ao crédito no País.

Dívida interna também tem sido gerada para cobrir prejuízos operacionais do Banco Central, por exemplo, R$ 147 bilhões em 2009, R$ 48,5 bilhões, em 2010.

Investigações detectam ainda a geração de dívida externa em processos fraudulentos, com suspeita de renúncia à prescrição de dívidas, que em seguida foram transformadas em títulos da dívida externa em Luxemburgo. Aceitos como moeda para comprar empresas privatizadas, tais títulos transformam-se em outros títulos da dívida externa e interna.

Todas essas dívidas exigem o pagamento de juros e encargos, demandando ajuste fiscal, corte de gastos e investimentos públicos, aumentando tributos e entregando patrimônio por meio de privatizações. Evidentemente, emitindo mais títulos para pagar juros, o que é inconstitucional (art. 167 da Constituição Federal).

A dívida pauta o modelo econômico, cujas metas principais são o superavit primário (economia forçada para pagar parte dos juros da dívida) e as metas de inflação, com regime baseado em juros elevados, que não combate o tipo de inflação verificado no Brasil. (A inflação no Brasil decorre do aumento de preços administrados, como energia, telefonia, combustível, transporte etc. e preços de alimento devido à política agrícola equivocada, que incentiva a produção de commodities para exportação.) 

A dívida serve de justificativa para as contrarreformas, que destroem direitos sociais e trabalhistas, a privatização de empresas estratégicas e estruturas de Estado, e a contínua entrega de matérias-primas por preços ditados pelas bolsas de Chicago (EUA) e Londres (Inglaterra).

A dívida é algo bem distante das comparações banais que aparecem na grande mídia, ou seja, simplesmente o resultado de má gestão, de gastar mais do que se ganha. Trata-se de um grande e poderoso esquema: dominação econômica e transferência de renda por meio de juros abusivos, juros sobre juros.

O custo social disso é imensurável, pois joga o gigante Brasil na 79ª posição no ranking dos direitos humanos (IDH/ONU); penúltima da educação ; 128ª do crescimento econômico; e o país mais injusto socialmente, onde a maioria da população sobrevive na pobreza ou na miséria, sem acesso aos direitos fundamentais previstos no art. 6o da Constituição (Índice Global de Habilidades Cognitivas e Realizações Educacionais).

Esse cenário é de escassez, não há recursos sequer para os investimentos necessários aos direitos sociais; as notícias são alarmantes diante da falta de recursos em diversos estados para pagar a seus servidores em dia.

Vivemos a indigência brasileira, porém, nossa realidade é de extrema abundância. O país detém, por exemplo:

• a maior reserva de nióbio. 98% das reservas são brasileiras. Os outros 2% são do Canadá,país que garante saúde e educação públicas, gratuitas e de excelente qualidade;

• a terceira maior reserva de petróleo;

• a maior reserva de água potável;

• a maior área agriculturável e clima favorável, permitindo a produção de alimentos durante o ano todo;

• riquezas biológicas (fauna e flora), minerais diversos e raros;

• extensão territorial continental e população integrada – falamos o mesmo idioma;

• grande potencial energético, industrial e comercial

• riqueza humana e cultural.

Temos, portanto, um cenário econômico discordante da realidade nacional.

É urgente corrigir essa “esquizofrenia” e estancar seus imensos danos patrimoniais, sociais e morais.Para isso, é imprescindível enfrentar o sistema da dívida, um dos causadores dessa escassez.

Queremos o nosso Brasil de verdade. Sair desse cenário de escassez e viver nossa realidade de abundância, com vida digna para todas as pessoas.


Maria Lúcia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida / Coordenadora do Grupo Social/Econômico do Movimento 2002 O Brasil que queremos. Graduada em Administração e em Ciências Contáveis, possui MBA em Administração Tributária pela FGV-EAESP, e foi Auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil  Mini currículo.

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