“Sem o SUS, o Brasil retrocederá ao tempo dos indigentes” (Fátima Oliveira/ viomundo.com.br – outubro,2015)
O Sistema Único de Saúde nasceu num momento auspicioso. A Nação brasileira caminhava unida em torno do projeto de redemocratização, o qual culminou com os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, que propiciaria ao país retornar ao Estado de Direito e ao respeito às normas e garantias constitucionais. A Carta Magna, a “Constituição Cidadã”, conduziria o Brasil à Modernidade e à Civilização. Esta era a expectativa.
1. O nascimento do SUS
O Sistema Único de Saúde nasceu num momento auspicioso. A Nação brasileira caminhava unida em torno do projeto de redemocratização, o qual culminou com os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, que propiciaria ao país retornar ao Estado de Direito e ao respeito às normas e garantias constitucionais. A Carta Magna, a “Constituição Cidadã”, conduziria o Brasil à Modernidade e à Civilização. Esta era a expectativa.
A Saúde Pública tornou-se um dos mais belos capítulos da nova carta dos brasileiros. Fruto do trabalho coletivo de um grupo de sanitaristas, dispostos a lutar para colocar a Saúde como alta prioridade na pauta das Políticas Públicas do país. Ao citar nomes, injustiças poderiam ser cometidas. Trazer à lembrança Sérgio Arouca, Nelson Rodrigues dos Santos, Gilson Carvalho, Hésio Cordeiro, Almir Gabriel, Carlyle Guerra de Macedo, Ubaldo Dantas, Mário Magalhães da Silveira, os quais, junto a tantos outros, líderes reconhecidos como imprescindíveis nessa luta, talvez venha agregar representatividade e legitimidade ao grupo que soube unir o saber técnico e o saber político para dotar a nação do mais ousado, generoso e justo sistema de saúde concebido no século 20.
Se, internamente, o momento político era auspicioso, o quadro internacional evidenciava, no entanto, o avanço significativo, principalmente na Europa, das teses econômicas do Neoliberalismo, um inimigo natural – e implacável – das Políticas Públicas e do papel do Estado na sua formulação e execução.
A surpreendente eleição do senador Fernando Collor de Melo à Presidência da República, em 1989, representou de maneira clara, a ascensão dos fundamentos neoliberais ao comando do país. Essa inesperada mudança na frente interna antecipava alterações futuras no campo político que provocariam sérios reflexos na consolidação do novo sistema de saúde.
Tentaremos demonstrar, quase didaticamente, porque o SUS, nos seus 25 anos de funcionamento, tornou-se gradativamente (inexoravelmente?), um corpo sem pés nem cabeça. Pés para caminhar e progredir com segurança e capacidade de resposta aos desafios impostos pelos novos conceitos de Saúde. E cabeça para promover as adaptações do Sistema frente às profundas mudanças provocadas pelo rápido acúmulo do conhecimento científico e pela irreversível incorporação de novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas nesta área.
Problemas operacionais, decorrentes da sua organização interna, e de um ambiente externo difícil e até claramente hostil, contribuíram para que o sistema público de saúde não tenha logrado, nos seus 25 anos de funcionamento, se firmar como uma conquista efetiva da população de baixa renda, excluída do acesso a procedimentos que se tornaram rotina na prática médica universal. Esta, talvez, a maior (e provavelmente injusta) contradição do SUS: não ser percebido pelos seus usuários, efetivos e potenciais, e que apenas dele dependem, como um sistema prestador de serviços de elevada qualidade em todas as áreas prioritárias de sua atuação assistencial: promoção, prevenção e tratamento. E que se mostrem dispostos a defendê-lo.
2. O SUS – sua força e sua fraqueza
A força do SUS está representada primeiramente pelos fundamentos ou princípios doutrinários que nortearam a sua origem: 1. Universalidade = a Saúde como direito de todos, dever do Estado; 2. Integralidade = cobertura integral a todas as etapas do processo de atendimento à Saúde, desde a Promoção até a reabilitação, os cuidados paliativos e assistência domiciliar, e não somente no nível hospitalar; 3. Equidade = a assistência à Saúde será oferecida a todos os cidadãos brasileiros, independente da sua origem, classe social ou nível cultural ou econômico. E este princípio é estendido a todos os residentes no país, brasileiros ou não. (Lei nº 8080, de 20 de setembro de 1990)
Os princípios organizacionais ou estratégicos pressupõem:1.Descentralização= o município torna-se o local de organização e oferta dos serviços de Saúde à comunidade; 2.Hierarquização = os serviços de Saúde serão organizados de acordo com o seu grau de complexidade: básicos, intermediários e hospitalares, circunscritos a uma determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos; 3) Participação Social = a Comunidade, através da sua participação nos Conselhos locais, regionais e nacional passa a ter ação direta e ativa na formulação, na execução e no controle/avaliação dos serviços de Saúde; 4) Regionalização = processo de articulação entre serviços existentes, visando o comando unificado dos mesmos. (Lei 8080).
Quanto à fraqueza do SUS: nos seus 25 anos de existência, o Sistema vem enfrentando desafios – incontornáveis – representados pela necessidade da adaptação dos seus princípios operacionais, e até mesmo da correção de rumos, diante de mudanças verificadas no cenário epidemiológico e demográfico do país. A chamada “transição”, ocorrida no perfil populacional, com o significativo e rápido aumento do número de idosos na composição por faixas etárias, e na manifestação precoce das doenças da “afluência” na população brasileira, com a substituição das enfermidades infecciosas e parasitárias pelas não-transmissíveis.
Para dificultar ainda mais as ações na esfera da Saúde Pública, houve a mudança na distribuição da população brasileira, iniciada na década de 1960, com a aceleração do processo de industrialização, tornando o Brasil um país essencialmente urbano. Provocando o crescimento desordenado das cidades e o surgimento da urgente necessidade de equipamentos característicos dos espaços urbanos: transporte, escolas, unidades assistenciais e de segurança pública. Tarefas a serem cumpridas pelo Estado, com os recursos públicos – finitos – disponíveis.
Na área da Saúde Pública poderiam ser acrescidos dois novos desafios ao Sistema:1. a inserção, por vezes incontrolável, de novas e caras e complexas tecnologias diagnósticas e terapêuticas (equipamentos e fármacos); 2. pelo fato das doenças não-transmissíveis, agora prevalentes no perfil epidemiológico, constituírem “doenças de controle” (Hipertensão Arterial, Diabetes Mellitus, por exemplo), que, uma vez diagnosticadas, exigem o acompanhamento contínuo e permanente dos pacientes sob a responsabilidade do Sistema de Saúde. Lembrando, mesmo correndo o risco de parecer demasiadamente óbvio, queainda não existem vacinas para as doenças não – transmissíveis.
3. A resposta do SUS
De que forma o SUS reagiu e se adaptou a estes imensos desafios? Qual a capacidade de resposta da organização interna do Sistema a tais problemas?
Poderíamos começar pela análise da “organização interna do Sistema”. Mas antes desta, há uma questão de fundo, situada no cenário externo, a qual foi decisiva para que chegássemos às duas primeiras décadas do século 21 com as pesquisas de opinião mostrando que 2/3 da população brasileira apontam a “saúde” como um dos principais problemas das políticas públicas do país. A tal ponto que se for perguntado, aleatoriamente, a cada 10 brasileiros, “- como está a Saúde Pública”? sete a oito deles responderão: – “um caos!” O SUS estaria, por essa ótica, condenado ao limbo. Ou ao fracasso completo.
Voltemos à criação do SUS e ao surgimento do estado neoliberal, quando, a partir de década de 1990, ocorreu a inserção do Brasil como mercado emergente da economia global e a consequente reestruturação do Estado – leia-se a desestatização – e o inexorável, e irreversível, processo de desregulação, abertura dos mercados, internacionalização da indústria, da agricultura e do sistema bancário ( Ianni, O, 1997). Tais mudanças tornariam o SUS uma espécie de anacronismo do sistema econômico vigente. Algo a ser tolerado, diante qual todos se mostrariam favoráveis, apenas para uso externo, mas nos bastidores trabalhando pela sua “neutralização” e, quem sabe? a sua extinção definitiva.
Um momento emblemático dessa dura constatação, ocorreu em 2007, quando da votação no Congresso Nacional pela continuidade ou pela extinção da CPMF, preciosa fonte de recursos do SUS. A qual contribuía com 40 (quarenta) bilhões de reais, POR ANO, para o Sistema. A extinção da CPMF foi intensa e efusivamente comemorada por deputados e senadores, claro, todos eles “apoiadores” do SUS. Um triste, e inesquecível, momento de cinismo político explícito.
No interior do Sistema havia sérios problemas, igualmente. A começar pelo processo de “Municipalização” o que tornaria o SUS extremamente desigual em sua eficiência nas diversas regiões do país. Poucos municípios, e mesmo algumas capitais, estavam preparados e com sua infraestrutura de saúde apta a enfrentar, com êxito, as novas responsabilidades na complexa área da Saúde.
Por outro lado, o comando interno do Sistema não ficaria bem definido. Frente à municipalização, qual seria o papel do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais no Sistema? Mais ainda, os mecanismos de administração interna se mostraram frágeis no planejamento, execução e controle das ações. Talvez por excesso de preocupações com o “autoritarismo” e a “verticalização”, as concepções de controle operacional não se mostraram efetivas. Comissões bi e tripartites, os conselhos, em todos os níveis, não foram eficazes na criação e na sustentabilidade do paradigma assistencial almejado pelo Sistema. Precisam ser repensados. São constatações óbvias, facilmente detectáveis, mas que não conseguiram, ainda, mudar a cultura institucional do SUS.
No entanto, o SUS foi concebido como instância moderna de Saúde Pública, tendo como foco a Saúde Integral, centrada nas pessoas, não apenas nos pacientes.
É este portanto o desafio atual: ampliar o campo de luta do SUS para além da repetitiva problemática do “sub financiamento” da “gestão”. Importante, mas não exclusiva.
Identificar os adversários reais do Sistema. Corrigir os erros estruturais e operacionais. Enfim, reinventar o SUS. Eis a urgente tarefa.
Geniberto Paiva Campos é coordenador do Observatório da Saúde do Distrito Federal / Coordenador do Grupo de Estudos de Saúde do Movimento 2022 O Brasil que queremos