José Monserrat Filho*
“Eu não troco a justiça pela soberba. Eu não deixo o direito pela força.
Eu não esqueço a fraternidade pela intolerância. Eu não substituo a
fé pela superstição, a realidade pelo ídolo.”
Rui Barbosa em conferência proferida no Politeama Baiano, em Salvador,
no dia 29 de maio de 1897.1
“O maior côco que a Bahia produziu” era o título da peça. Nós, alunos do científico do saudoso Colégio Cruzeiro do Sul, em Porto Alegre, a encenamos em 1957, para delírio das outras turmas. No papel principal, Clovis Erly Rodrigues – hoje bispo aposentado da Igreja Anglicana do Brasil. Clovis entrava em cena carregando um carro de mão cheio de livos. Com muito bom humor, reverenciávamos a vida e a obra de Rui Barbosa (1849-1923), como se costumava fazer naquela época com relação a grandes vultos da nossa história.
“Maior côco” era talvez uma licença poética. A Bahia já dera ao mundo outras figuras ilustres na vida política e cultural do país, como Luz Gama, Quintino Bocaiúva, Castro Alves, para citar apenas alguns. Sem contar outros tantos que vieram depois, como Elisário Coutinho, Eliane Azevedo, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, João Gilberto, Antonio Torres, Caetano, Gil.
Ainda assim, em setembro de 2013, Rui Barbosa foi eleito “o maior baiano de todos os tempos” por um juri de 214 personalidades, convocadas pelo jornal A Tarde, de Salvador.
O mais interessante dos 74 anos de sua conturbada existência é que Rui era um político, no mais completo e respeitável sentido do termo. Diríamos hoje que a política, com “P” maiúsculo, estava por inteiro em seu DNA. Era a mais forte das heranças paternas. Rui jamais a abandonou.
E a prova maior disso está na forma com que defendeu a grande política, em plena 2ª Conferência da Paz, na Haia, Holanda, em 1907. O magno evento, presidido pelo 1º delegado do Império Russo, Alexandre Ivanovitch Nélidow, tinha diante de si duas tarefas básicas: resolver pacificamente os litígios entre os países e atenuar os efeitos da guerra, embora a limitação dos armamentos não constasse de sua agenda.
Rejeitando a ideia da transformação de navios mercantes em vasos de guerra, Rui aludiu a fatos históricos e lamentou que à Conferência fosse vedado tratar de assuntos da política internacional. Ao concluir, chocou-o a advertência impertinente e desrespeitosa de outro delegado russo, Frederic Frommhold De Martens (1845-1909), presidente da sessão: “Devo observar-lhe que a política não é da alçada da Conferência.”
Rui reagiu, replicando em francês fluente: “As palavras com que acabais de receber o meu discurso parece envolverem uma censura, que não posso, que não devo consentir fique sem resposta imediata.” Logo indaga altivo: “Seria (…) justo acolha o meu discurso com a solene advertência de que a política nos é matéria proibida, como se eu acabasse de transgredir essa regra?” E argumenta com dados do próprio império do famoso jurista eslavo: “Não nos esquecemos de que Sua Majestade, o Imperador da Rússia, no seu ato convocatório da Conferência da Paz, expungiu formalmente do nosso programa as questões políticas. Mas essa interdição, obviamente, só visara à política militante… a que revolve, agita e desune os povos nas suas relações internas ou nas suas relações internacionais, nunca a política encarada como ciência, a política estudada como história, a política explorada como regra moral… Considerada nessa acepção a política, acaso no-la poderiam tolher? Não, senhores.” Era um improviso, mas quem o diria?
Rui arrematou: “Aí está por que, senhores, me vejo obrigado a concluir, por fim de contas, que cortar-nos de todo em seu todo o contato com a política seria ditar-nos o impossível, e o que então se-nos impediria era o próprio uso da palavra.”
Para ele, portanto, a tentativa de limitar ou até anular o embate de ideias políticas pode se tornar um atentado ao direito de livre manifestação do pensamento. Nos dias atuais, quando em muitos países, inclusive no Brasil, se prega a despolitização da vida pública, inclusive na educação e na cultura em geral, a lição de Rui soa como música.
Na Conferência, o resultado não se fez esperar. O próprio De Martens desceu de seu pedestal para pedir ao delegado do Brasil que não guardasse ressentimentos e abraçou-o cordialmente – algo raro, visto como grande concessão. Daí por diante, Rui tornou-se uma das figuras mais respeitadas da Conferência. Ninguém perdia a oportunidade de ouvi-lo.2
Mas o ilustre baiano sabia o que estava atrás do temor russo a se falar em política. A Rússia vivia desde a revolução de 1905 intensa mobilização política e, justamente naquele ano de 1907, a repressão aos movimentos populares, de várias índoles, atingira um grau sem precedentes. O Czar de todas as Rússias, como era tratado, sentia seu imenso poder escapar-lhe das mãos.
Rui aprendera rapidamente os subterrâneos da geopolítica mundial com o Barão de Rio Branco (1845-1912), ministro das Relações Exteriores, e Joaquim Nabuco (1849-1910), político, jurista, historiador e diplomata, embaixador nos Estados Unidos, de 1905 a 1910. O Barão confiara nele para liderar nossa primeira e difícil missão diplomática no mundo dos poderosos, e ambos muito o ajudaram a preparar-se para enfrentá-la com todo o seu talento de político e orador.3
Ainda na Conferência, ao se debater a criação de uma Corte Internacional Permanente de Arbitragem, Rui, apoiado pelo Barão, defendeu o princípio da igualdade jurídica das nações, em confronto com a posição das grandes potências da época – Impérios britânico, russo, áustro-húngaro, alemão e italiano, além da França e Estados Unidos – que tencionavam controlar por completo o novo tribunal. As grandes potências viam como absurda a tese da igualdade jurídica dos Estados – Como o Reino Unido poderia ser colocado em pé de igualdade com a Sérvia ou mesmo com o Brasil?! Rui, seguro de seus argumentos, contra-atacou: Se os grandes afirmavam não poder confiar na imparcialidade dos pequenos nos trabalhos da Corte, não teriam estes fundadas razões para não acreditar na isenção daqueles? Para o representante brasileiro, “como regra geral, é o mais poderoso que tem menos razão para respeitar a lei”.4
Qualquer semelhança com fatos que ocorrem hoje, em pleno século 21, não será mera coincidência. Mas o princípio da igualdade jurídica dos Estados acabou incorporado à Carta das Nações Unidas, de 1945, o documento mais importante do Direito Internacional do nosso tempo.
Rui foi um homem público adiante de seu tempo. Como ministro da Fazenda do primeiro governo republicano, propôs planos para industrializar o país – como Getúlio Vargas o faria a partir de 1930 –, e lançou a ideia de garantir um salário mínimo para os trabalhadores, bem como a de salários iguais para homens e mulheres. Católico, foi dele o decreto a favor da liberdade religiosa.
Outra luta política notável foi sua campanha pela abolição da escravatura. Rui criou o lema do movimento: “Primeiro a abolição, nada sem a abolição, tudo pela abolição.” A frase pegou. Todos a repetiam. Mas, em meio ao entusiasmo geral pela extinção da escravidão, a maior chaga do país à época estava excluída do debate político mais amplo. Tentava-se vender a política brasileira com cores neutras, mornas, sem vibração, sem as iniciativas realmente imperiosas. Rui via nesse esmaecimento “uma espécie de divindade gaga, semilouca e míope”.5
Vivo fosse hoje, atento como sempre foi às tramas e manobras de cada momento no vão esforço de estancar em definitivo a consciência nacional e a sabedoria popular, possivelmente proclamaria: “Primeiro a democracia, nada sem a democracia, tudo pela democracia”.
*Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.
Referências
1) Antologia Rui Barbosa, Seleção e Prefácio de Luís Viana Filho, Ed. Saraiva, 2013, p. 21.
2) Rui Barbosa, 1º volume da série “A vida dos grandes brasileiros”, texto de Márcio Tavares d\’Amaral e supervisão de Américo Jaconina Lacombe, Ed. Três, 2001, pp. 190 192.
3) Idem ibid, pp. 186-187.
4) Idem ibid, pp. 193-195.
5) Idem ibid, pp. 120-125.