Toupeiras pedagógicas (a propósito dos dados do Saeb/Ideb 2015)

Pedro Demo*

 

Dia 9 de setembro saíram dados do Saeb/Ideb para 2015, de novo uma ducha de água fria. O ministro, constrangido, compungido, alegava ser “uma tragédia”, em especial no ensino médio, mormente em matemática. A surpresa é inútil, porque totalmente esperada: quem toca o mesmo trem no mesmo lugar, a velocidades declinantes, só pode se aproximar do precipício. As “explicações”, que se atribuem a “especialistas”, são também as mesmas, voltadas para impropriedades curriculares, sobretudo no ensino médio. Volto aqui a uma tecla antiga: sem diagnóstico decente não temos condição de encarar a realidade; vamos postular um resfriado para um câncer. Este erro crasso está aninhado em todas as políticas educacionais atuais, como se pode ver flagrantemente no PNE: quer tocar o mesmo trem, que teria problemas sim, mas da ordem do resfriado; não se consegue descobrir que tem câncer. Aprender, nesta ridícula “Pátria Educadora”, é algo cada vez mais excepcional (Demo, 2016a), sobretudo no ensino médio.

 

I. DIAGNÓSTICO TOLO  

 

Quem seriam esses “especialistas” que cercam o Ministro para lhe sugerir que o problema mais agudo é o currículo do ensino médio, alienado da realidade dos estudantes? Não seria o currículo uma instrumentação técnica e pedagógica, que pode contribuir ou atrapalhar, dependendo de outros fatores bem mais incisivos para o estudante aprender? O currículo “não aprende” pelo estudante, tal qual a “aula”. Aprendizagem se dá na mente do estudante, se ler, estudar, pesquisar, elaborar, se comparecer a dinâmica autoral, sendo professor, “mediador” (Demo, 2016b) tipicamente; ele não “causa” a aprendizagem, porque é fator externo; como a neurociência atesta, aprendizagem é dinâmica autopoiética, de dentro, autoral – nada substitui a participação autoral do estudante. Mas vem um “especialista” – mais propriamente uma toupeira pedagógica – que sugere ser o currículo referência capital. O MEC investiu numa reformulação curricular em geral considerada pertinente recentemente e esperamos que isto contribua, mas alegar que o problema é o currículo é diagnóstico tolo. Há outros problemas bem mais complexos e desafiadores, bem mais próximos da aprendizagem estudantil, como, por exemplo, a qualificação e valorização docente. Não se fala disso. Quando Mercadante passou a primeira vez no MEC (2013), condoído com a falta lancinante de professores de física, química e matemática (http://portal.mec.gov.br/component/content/article/211-noticias/218175739/19081-novo-programa-pretende-estimular-vocacoes-de-professor-e-cientista) – menos de 20% dos professores de física têm curso de física (Foreque et alii, 2013) –lançou programa que propôs a mesma farsa do diagnóstico atual das toupeiras pedagógicas: bolsa de R$150,00… A piada que corria na Esplanada é que havia confundido com o Bolsa-Família (com todo o respeito a este programa); afinal, um jovem que decide fazer licenciatura de matemática para ganhar pouco mais de R$ 2 mil mensais certamente não sabe calcular!

Assim, se currículo é sempre questão importante, a questão docente é “fatal” – não fizemos nada ainda para arrumar isso. Quando em alguns estados o aprendizado adequado de matemática é de 3% (em 2013, em Roraima, Amazonas, Maranhão, por exemplo) (Demo, 2016c), não escapamos de ver alguma associação com o licenciado em matemática, embora a correlação linear (mecanicista) não caiba. Não cabe, primeiro, porque correlação não é causação – o estudante pode aprender mal matemática por inúmeras outras razões, entre elas pobreza, falta de apoio familiar, necessidade de trabalhar etc.; segundo – e principalmente – porque aprendizagem se dá na mente do estudante, não na aula do professor – este não pode responder sozinho, jamais. No entanto, restringindo-nos à associação entre desempenho docente e discente, o licenciado é uma tragédia. Sem consertar isso, continuamos atirando para todos os lados, em especial contra currículo, sem acertar.

Se levarmos em conta que os estudantes que quase nada aprendem têm todas as aulas, fazem todas as provas, veem todos os conteúdos, mas não aprendem, é preciso, honestamente, questionar esta didática. O 9o ano acrescentado ao ensino fundamental não trouxe nenhum benefício para os estudantes, como indicam os dados para os anos finais, porque o acréscimo é uma falsificação pedagógica: aumenta-se ensino, não aprendizagem. Ensino há de sobra, não há aprendizagem. O diagnóstico aponta para um sistema de ensino inepto, em bancarrota, decadente, em particular no ensino médio. A Tabela 1, que espelha o Ideb do país, sugere que no ensino médio a escola pública, de 2005 a 2015, foi de uma proficiência de 3.1 para 3.5 (andou 0.4 pontos em dez anos!), ficando abaixo da meta para 2015 (4.0). Na escola privada, o resultado foi ainda mais dramático – foi de 5.6 em 2005 para 5.3 em 2015 (caiu 0.3 pontos em dez anos – vem caindo desde 2013), ficando longe da meta (6.3) para 2015. Nos anos finais, a escola pública foi de 3.2 em 2005 para 4.2 em 2015 (subiu 1.0 ponto em dez anos), mas ficou abaixo da meta para 2015 (4.5); na escola privada, foi de 5.8 em 2013 para 6.1 em 2015 (subiu 0.3 pontos) em dez anos, postando-se bem abaixo da meta para 2015 (6.8). Somente nos anos iniciais houve algum refrigério: na escola pública foi de 3.6 em 2005 para 4.9 em 2015 (subindo 1.3 ponto em dez anos), postando-se um pouco acima da meta para 2015 (5.0); na escola privada, foi de 5.9 em 2013 para 6.8 em 2015 (subindo 0.9 pontos em dez anos), mas um pouco abaixo da meta para 2015 (7.0).

 

          Tabela 1. IDEB 2015 – Brasil

Anos Iniciais

Meta 2015

 

2005

2007

2009

2011

2013

2015

 

Total

3.8

4.2

4.6

5.0

5.2

5.5

5.2

Pública

3.6

4.0

4.4

4.7

4.9

5.3

5.0

Privada

5.9

6.0

6.4

6.5

6.7

6.8

7.0

Anos Finais

Total

3.5

3.8

4.0

4.1

4.2

4.5

4.7

Pública

3.2

3.5

3.7

3.9

4.0

4.2

4.5

Privada

5.8

5.8

5.9

6.0

5.9

6.1

6.8

Ensino Médio

Total

3.4

3.5

3.6

3.7

3.7

3.7

4.3

Pública

3.1

3.2

3.4

3.4

3.4

3.5

4.0

Privada

5.6

5.6

5.6

5.7

5.4

5.3

6.3

          Inep – Ideb.

 

Vale ressaltar que o desempenho privado é sempre superior em termos numéricos ao público, mas, pedagogicamente falando, é bem mais questionável – nunca atingiu a meta em 2015 (anos iniciais, finais, ensino médio); no ensino médio está caindo desde 2013; nos anos finais, cambaleia em torno de 6.0 (6.0 em 2011, 5.9 em 2013; 6.1 em 2015). Tratando-se da escola que mais alardeia conteudismo, sistema de ensino e outras balelas instrucionistas, é preciso questionar esta didática. Por certo, a escola privada “não se lixa”, porque continua a Meca do vestibular e concursos, mas pedagogicamente falando é um desastre. A Tabela 2 destaca o Distrito Federal, em parte porque deveria ser a unidade federada mais avançada, por sua história desde a fundação de Brasília, por ter, de longe, os melhores salários docentes, por ter uma EAPE (instituição que se dedica à formação continuada docente), por ser destaque em termos de escolas privadas no cenário nacional etc. No ensino médio, a escola privada foi de 5.9 em 2013 para 5.6 em 2015 – só caiu desde 2005, muito longe da meta de 6.6 para 2015; a escola pública foi de 3.0 em 2013 para 3.5 (subida mísera de 0.5 pontos em dez anos), abaixo da meta de 3.9 para 2015.

 

         Tabela 2. IDEB 2015 – DISTRITO FEDERAL

Anos Iniciais

Meta 2015

 

2005

2007

2009

2011

2013

2015

 

Total

4.8

5.0

5.6

5.7

5.9

6.0

6.1

Pública

4.4

4.8

5.4

5.4

5.6

5.6

5.8

Privada

6.4

6.1

6.5

6.8

6.9

7.1

7.3

Anos Finais

Total

3.8

4.0

4.4

4.4

4.4

4.5

5.1

Pública

3.3

3.5

3.9

3.9

3.8

4.0

4.5

Privada

6.0

5.9

5.8

6.0

6.1

6.0

6.9

Ensino Médio

Total

3.6

4.0

3.8

3.8

4.0

4.0

4.5

Pública

3.0

3.2

3.2

3.1

3.3

3.5

3.9

Privada

5.9

5.5

5.6

5.6

5.7

5.6

6.6

          Anos Iniciais

 

Nos anos finais, a escola pública foi de 3.3 em 2013 para 4,0 em 2015 (subida de apenas 0.7 pontos em dez anos), abaixo da meta de 4.5 para 2015; a escola privada teve 6.0 em 2005 e 2015, completamente estagnada, abaixo da meta de 6.9 para 2015. Nos anos iniciais, a escola pública foi de 4.4 em 2013 para 5.6 em 2015 (subida de 1.2 ponto em dez anos, muito pouco certamente), um pouco abaixo da meta para 2015 (5.8); a escola privada foi de 6.4 em 2013 pra 7.1 em 2015 (subida de 0.7 pontos em dez anos, extremamente insuficiente), abaixo da meta de 7.3 para 2015. Notamos aqui que, enquanto para o país a escola pública nos anos iniciais ficou acima da meta (ainda que levemente), o DF sequer conseguiu isso – desde 2009 anos iniciais estão estagnados…

A Tabela 3 apresenta o “aprendizado adequado” no DF (entre 1995 e 2013). Enquanto nos anos iniciais aparece um tom de subida, em especial em matemática (foi de 20.4% em 1995 pra 53.3% em 2013 – subida de 32.9 pontos de percentagem [pp], muito notável), bem menos em língua portuguesa (53.9% em 1995 para 60.8% em 2013 – subida de apenas 6.9 pp em 18 anos), nos anos finais e ensino médio registramos quedas clamorosas; nos anos finais em matemática, o aprendizado adequado em 1995 foi de 28.0% e de 22.8% em 2013; em matemática foi de 49.1% em 1995 e de 36.6% em 2013; no ensino médio, em matemática foi de 31.5% em 1995 e de 17.0% em 2013 (queda de 14.5 pp); em língua portuguesa foi de 65.5% em 1995 e de 40.2% em 2013 (queda de 25.3 pp).

 

         Tabela 3. Aprendizado adequado, Ideb –Distrito Federal (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

DF- 4a/5o-EF-Mat

20.4

20.1

18.3

25.9

26.0

37.1

39.0

52.1

53.0

53.3

DF-4a/5o-EF-PT

53.9

33.4

30.3

35.8

43.2

43.8

45.7

52.8

57.9

60.8

DF- 8a/9o-EF-Mat

28.0

20.0

21.2

18.8

19.0

25,5

22.1

22.6

24.4

22.8

DF-8a/9o-EF-PT

49.1

39.7

22.0

28.7

25.4

29.5

29.0

34.7

36.2

36.6

DF-3aEM-Mat

31.5

36.2

22.0

17.9

22.7

23.6

17.8

17.7

15.8

17.0

DF-3aEM-PT

65.5

55.8

42.8

40.9

39.4

40.6

43.3

38.4

40.3

40.2

          Fonte: Todos pela Educação

 

Enquanto isso a EAPE oferece cursos de formação continuada sistematicamente. A pergunta que cabe é: por que não se consegue perceber que tais cursos são contraproducentes, já que mantêm o instrucionismo inútil do sistema de ensino? Está claro: quanto mais se oferecem tais cursos, menos o estudante aprende… Há aí dificuldade extrema de aceitar um diagnóstico honesto.

 

II. BODES EXPIATÓRIOS PARA TODOS OS GOSTOS

 

A evasiva mais repetida – pelo Ministro pelo menos, certamente ecoando suas toupeiras pedagógicas – é que o currículo do EM é inadequado: mantém conteúdos alienados, mal postos, desatualizados etc. Embora este problema possa existir e currículo seja sempre referência pedagógica fundamental, a alegação é parte de um diagnóstico totalmente incompetente, mas comum no MEC (por exemplo, no PNE) (Demo, 2016). O MEC produz fartamente dados sobre educação (Inep existe para isso), mas não se vê em que isto acarreta consequências para a gestão pública. Mais parece um gasto duvidoso ou para inglês ver. É parte do faz-de-conta da política educacional. Estou sugerindo que a questão curricular é um dos bodes expiatórios agora mais citados, porque se lança sobre a recente reformulação curricular uma expectativa infantiloide de redenção nacional (Demo, 2016d). O discurso sobre adequação curricular à vida dos estudantes é tão charmoso quanto fútil, porque não leva em conta discussões internacionais fundamentais sobre a oportunidade do conhecimento que a escola deveria proporcionar.

Comecemos pela polêmica de Laurillard (2007), que questiona a aprendizagem “situada” (em parte fomentada por Gee, 2004), porque pode facilmente prejudicar a construção do pensamento abstrato, formal, analítico considerado o centro da proposta de aprendizagem emancipatória, em que pese sua ambiguidade positivista e eurocêntrica. Não se nega a importância de situar a aprendizagem, porque pode provocar motivações intrínsecas importantes (que Gee enfatiza nos videogames sérios – Gee, 2003 – no que é acompanhado por Prensky – Prensky, 2010 – embora não sem contestação – Thomas, 2011);  questiona-se reduzir matemática, por exemplo, a utilitarismos imediatistas, porque seu lado abstrato não é descartável, em hipótese nenhuma. O professor que sabe lidar com isso procura “situar” a aprendizagem, o que muitas vezes é buscado via pedagogias da problematização, projeto, pesquisa, mas sem sacrificar a modelização formal analítica. Segundo Flynn (2012) (aquele do “efeito Flynn”) (https://en.wikipedia.org/wiki/Flynn_effect), o que tem “se aprimorado” no tempo em termos de QIs mais elevados no tempo (comparados com resultados do início do século passado), é o pensamento formal, abstrato, analítico, certamente parte fundamental da “inteligência”, por mais que isto corra o risco de eurocentrismo e colonialismo.

Não é o caso, então, fugir da matemática abstrata; há que encarar, de modos pedagógicos pertinentes que muitos países conseguem fazer (em especial Japão). Existe no Brasil debate fora de lugar, por vezes capitaneado por gente de áreas sociais que busca valorizar conhecimento do senso comum, comunitário, cotidiano – importantíssimo para outros fins (identidade comunitária, histórica, cultural…) – que não contribui para a emancipação dos alunos mais pobres, já que se lhes oferece coisa pobre. Retomando a proposta de Paulo Freire, em especial da “pedagogia da autonomia” (1997), “ler a realidade” não se resolve com senso comum e outras “águas bentas”, mas com matemática e outros tipos de conhecimento abstrato, tal qual ocorreu no embate emblemático entre Galilei e o Papa – este foi superado, não por conversa cotidiana, mas com matemática, porque esta permite calçar a autoridade do argumento, deixando para trás o argumento de autoridade. O oprimido precisa desconstruir a opressão, contrapor-se ao opressor, descobrir que não pode esperar dele a libertação – esta pegada crítica não é oportunizada pelo senso comum, mas pela análise formal dura, “objetiva”, frontal. A escola só enterra o pobre mais ainda se evitar esta habilidade formal abstrata.

A emancipação não pode ser “eurocêntrica”, porque é colonizadora ao extremo (Harding, 2011), mas não pode ser também “tupiniquim”. Há que descobrir uma emancipação do próprio pobre e que não dispensa habilidades abstratas matemáticas. Assim, as alegações oficiais ligadas a falhas curriculares são uma grande desconversa, em parte de “especialistas” muito desatualizados, se não toupeiras pedagógicas, em parte como autodefesa, evitando serem questionados. Em termos diagnósticos, são instâncias que comprometem o aprendizado adequado escolar, muitíssimo mais que inadequações curriculares:

a) políticas educacionais farsantes, como a do PNE, que continua apostando num sistema de ensino defunto; chega a propor a recuperação dos atrasos, que são astronômicos, mas que será feita pelo próprio malfeitor, como se o contraventor fosse o guarda da lei; ultimamente, tivemos programas oficiais claramente equivocados em termos práticos e teóricos, como Pnaic ou Mais Educação, indicando que esses “especialistas” são um contraexemplo; não existe “idade certa” para alfabetização (nos Estados Unidos propõe-se iniciar “educação científica” no pré-escolar, com 4 anos de idade – Linn & Eylon, 2011. Slotta & Linn, 2009), já que alfabetização em sentido mais profundo perdura a vida toda; existe “dose certa”, que todo professor precisa saber calibrar para cada idade; existe, não uma criança que precisa de três anos, mas uma escola analfabeta que atrapalha a criança; quanto a Mais Educação, qual o sentido de esticar para oito horas uma escola inútil?;

 

b) formação docente universitária totalmente inadequada, antiquada, equivocada, cujos resultados são dantescos nas escolas, ainda que não caibam correlações lineares entre desempenho docente e discente; formações continuadas caducas, como as “semanas pedagógicas” instrucionistas ou oferta de cursosà la pós-graduação lato sensu, que replicam o mesmo instrucionismo pretérito; o pedagogo não consegue alfabetizar (ANA que o diga – Demo, 2015) e o licenciado em matemática e língua portuguesa não conseguem que o aluno aprenda minimamente; ocorre que pedagogo e licenciado não aprenderam adequadamente, mas acham que podem “ensinar”;

 

c) contradições acadêmicas frontais que reservam estilos autorais de aprendizagem para mestres e doutores, não para graduados e pós-graduação lato sensu; a universidade bem sabe o que é aprender – pratica isso com seus mestres e doutores – não são formados via aula, prova e repasse, mas via pesquisa, porque devem tornar-se “autores”; mesmo com o Pibic que sempre foi o programa mais próximo do bom aproveitamento na graduação, não conseguimos trazer para a graduação o espírito da pós stricto sensu; a péssima formação é a regra;

 

d) qualificação e valorização docente – toda mudança escolar é, essencialmente, mudança docente; não fizemos nada nesta direção, nem mesmo com o piso salarial, que é uma infâmia; não se trata de culpar os docentes (Goldstein, 2014. Russakoff, 2015) – são vítimas do sistema de ensino e de uma profissão aviltada – mas de perceber que a aprendizagem do estudante exige “outro” professor; se quisermos na escola um aluno pesquisador, cientista, com produção própria de conhecimento, precisamos, antes, resolver isso no professor; estamos na idade da pedra.

 

III. DIREITO DE APRENDER

 

Ao lado do diagnóstico fajuto, escapista, evasivo e incompetente, temos a dificuldade de centrar o sistema na aprendizagem do estudante. Centra-se na aula, prova, repasse. Não se toca nesse miolo fétido, apodrecido, caduco. Avançam experiências em outra direção, sendo talvez  a mais notória da medicina que usa PBL (problem/ ou project/basedlearning), reconhecendo que médico mais bem formado é o pesquisador e cientista, não o papagaio das graduações. A universidade persiste em suas farsas; exige que professores produzam constantemente (muitos até se queixam do produtivismo à la Capes e CNPq) (Costa, 2016), porque reconhecem que é o modo mais efetivo de continuar aprendendo, mas não usam isso na graduação.

Vimos acima o caso do DF: oferecem-se cursos sistematicamente aos docentes, cujos estudantes aprendem cada vez menos. Diz-se que segue-se o modelo da UnB da graduação. O resultado é uma imensa “papagaiada” – instituição de papagaios que cuida de outros. Não há nenhum compromisso com o direito de aprender do estudante. O projeto Âncora (Demo, 2014. Pacheco, 2014. Pacheco & Pacheco, 2013) indica a distinção forte entre sistema de ensino e de aprendizagem: não tem aula, nem sala de aula, os professores sempre estão disponíveis para os estudantes estudarem, não há sequer ciclos ou seriação, os estudantes participam ativamente da escola, inclusive pais e comunidade, é uma das Escolas Integrais mais plenas existentes.

Hoje até mesmo autores afinados com a produtividade globalizado do mercado liberal querem este resultado: um aluno cientista pesquisador, com qualidade formal e política (Zhao, 2009; 2012). O mercado é contraditório, ao pedir um estudante crítico (desde que não critique o sistema produtivo), mas sabe onde o galo canta. Parece sarcástico que se busque nada mais que o direito de aprender na escola, sem firulas e enrolações. Não é o caso sugerir filiações, porque o compromisso é com o direito constitucional do estudante de aprender bem, não com autores e teorias, que são, naturalmente, importantes como instrumentação técnica e científica. Esta meta, mesmo tão óbvia, deveria implicar reconhecimento clarividente que todo diagnóstico minimamente honesto solicita: cuidar do professor. Um estudante só se torna cientista pesquisador nas mãos de um professor cientista pesquisador. Não adianta fugir disso. Mudar a escola implica mudar a qualificação e valorização docente. Impreterivelmente.

Em geral, são preferíveis as explicações mais simples (na tradição epistemológica de Occam – “navalha de Occam” – https://pt.wikipedia.org/wiki/Navalha_de_Occam). Enrolações teóricas, sobretudo teoricistas, fogem de práticas minimamente adequadas, evitando enfrentar problemas duros. Por exemplo, o alfabetizador precisa de profissionalismo inequívoco para conseguir alfabetizar uma criança xucra na escola, o que pede estágios desde o 2o semestre de formação e projetos de pesquisa e intervenção consequentes – todo alfabetizador deve ter encarado tais situações dramáticas nas escolas e aportado soluções de que seria capaz. Aí precisa de teorização – a mais elaborada possível – para que sua prática seja mantida aberta, em condição de continuar aprendendo. Infelizmente, temos escolas repletas de aula, provas, repasses, mais um currículo novinho em folha, mas permanece a mesma didática pré-histórica. Cuida-se de atrapalhar o estudante! 

 

CONCLUSÃO

 

Todos queremos uma “agenda positiva”, tal qual o Ministro. Mas só curamos um câncer, se não o confundirmos com resfriado. É inacreditável a imperícia diagnóstica do MEC, mesmo sendo fabricante tão assíduo de dados. Há que questionar os tais “especialistas” que põem na boca do Ministro tamanhas evasivas. Esta situação lembra o livro de Souza (2004) (ex-Ministro que ficou gloriosos oito anos no cargo) – Revolução Gerenciada – onde pretendia mostrar que sua gestão fora um planejamento à risca, milimétrico, algo infantil na verdade. Sem falar que em sua gestão de oito anos a qualidade do aprendizado só andou para trás, em geral e como regra, uma “revolução gerenciada” é algo mórbido, porque logo castra sua capacidade disruptiva. Eis dificuldade extrema de diagnóstico. Todos os partidos políticos que ocupam o Ministério mostram esta dificuldade, em parte porque querem impor uma agenda positiva sobre dados dantescos, em parte para fazer boa figura. Enquanto isso vamos empurrando um trem suicida…


*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).

 

REFERÊNCIAS

 

COSTA, F. 2016. A presença do Homo Academicus na contabilidade: Um olhar bourdieusiano sobre o contexto social do desenvolvimento da produção científica contábil brasileira. Tese de doutorado, USP/FEA, São Paulo.

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DEMO, P. 2016c. Aprendizado Adequado – Analisando dados do Ideb de 2013 e sua indicação de sistema falido de ensino – https://docs.google.com/document/d/1F1uM_OWtevFoqIvPjrzQj280bTpeArf_y7IQQTYa6Ro/pub

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