Questionando a graduação

Pedro Demo*

Proponho avaliar a graduação em nossas universidades indiretamente, através do desempenho escolar dos pedagogos e licenciados. Este tipo de avaliação deve ser tomado com cautela, porque não se pode traçar associação direta, linear (mecanicista) entre desempenho docente e discente. Há pelo menos duas razões para não fazer esta associação linear. Primeiro, porque em estatística, correlação sugere associação de variáveis, não causação. Segundo, porque, dando-se aprendizagem na mente do estudante, não na aula docente, o docente não pode “causar” a aprendizagem no estudante; pode mediar. Não há como o docente aprender, ler, estudar, pesquisar pelo estudante, porque aprendizagem é, substancialmente, exercício de autoria, não de reprodução.

Embora seja uso em alguns países traçar relação direta mecanicista entre desempenho docente e discente, em especial nos Estados Unidos, é erro estatístico palmar, bem como equívoco biológico (neurocientífico, mormente). É praticado este golpe por razões externas, quase sempre politiqueiras, para “responsabilizar” o professor em sentido pejorativo, tornando-o candidato a demissão, achincalhamento, depreciação pública (Horn & Wilburn, 2013). Está por trás disso também a reforma privatista americana que usa de todas as artimanhas para encurralar a escola e professores públicos, em nome da fé neoliberal na privatização da educação (Ravitch, 2013). Em parte, é reação ao êxito finlandês – totalmente público e gratuito –  que “não deveria funcionar”, mas é um dos que mais bem funciona, em todo o caso muito melhor que o modelo americano, para desgosto da ideologia neoliberal. Segundo análises recentes, a melhor escola americana ainda é a pública (Lubienski & Lubienski, 2013), mas contestada frontalmente por programas oficiais federais, como No Child LeftBehind (de W. Bush) e Raceto the Top (de Obama).

A avaliação que faço aqui não tem esse pano de fundo enviesado e aproveita dos dados indiretos a “associação” apenas entre desempenho docente e discente. De fato, o professor não pode “causar” a aprendizagem – seria positivismo escrachado (Demo, 2016) – porque sua ação própria é de mediação. Os dados indicam incapacidade flagrante, em especial do licenciado, na escola, em língua portuguesa e matemática (mais dramática nesta), insinuando que sua formação universitária foi um blefe. A universidade, por sua vez, não está acostumada a receber este tipo de crítica, preferindo despachar o problema para a escola – a formação acadêmica é adequada, a escola é que perverte o licenciado. Notando-se, porém, que o descalabro escolar é próprio também da escola privada (é a mais decadente no ensino médio, em termos relativos) (Demo, 2016b), a tese universitária não se sustenta, por mais que seja correto reclamar de muita coisa, em especial das condições de trabalho, nas escolas públicas.

Para não “forçar a barra”, usaremos aqui dados do Ideb de 2015 em estados mais desenvolvidos, onde poderíamos esperar desempenhos extremamente mais positivos. Veremos que, enquanto há algum alento nos anos iniciais (que vai em favor do pedagogo), nos anos finais surge decadência bem visível, que vira tragédia no ensino médio. Podemos questionar os dados do Ideb ou os dados em geral, por tenderem a captar procedimentos de memorização, mais que de aprendizagem, mas, sendo um tipo de avaliação externa que olha de longe e usando técnicas estatísticas bem reconhecidas (teoria da resposta ao item), não vou me deter nisso.

I. Desempenhos péssimos em Estados mais desenvolvidos 

Vamos analisar três estados mais desenvolvidos (Distrito Federal, São Paulo e Minas Gerais), bem como os dados para a média nacional (Brasil) e, como contraponto, um dos estados mais atrasados, Maranhão, em termos do queTodos pela Educação chama de “aprendizado adequado”.Veremos também dados do Ideb (proficiência), para sopesar o declínio também na escola privada, e dados da ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização), para observar a insuficiência do alfabetizador (pedagogo). Começando pelo Brasil (Tabela 1), o aprendizado adequado nos anos iniciais em matemática em 1995 foi de 19.0%, que baixou para 14.4% em 1999, mas a partir daí foi subindo, até alcançar 42.9% em 2015 – uma trajetória razoável: a cifra final era muito insatisfatória, mas estava subindo. Em língua portuguesa, o início em 1995 apresentou 39.3% de aprendizado adequado, baixou para 23.7% em 2001, mas a partir daí evoluiu razoavelmente, para chegar a 54.7% em 2015 – também era cifra insuficiente, mas estava subindo. Temos aí o lado pertinente do pedagogo, mais surpreendente em matemática, já que é comum pressupor que pedagogo não é apreciador de matemática, em geral. Vamos ver, porém, que esta matemática do pedagogo é a única que mostra vitalidade na escola. No período, matemática evoluiu em 23.9 pp (pontos de percentagem) e língua portuguesa em 15.4 pp, sugerindo que esta avançou bem menos, comparativamente. Podemos reclamar das cifras – eram muito baixas para 20 anos de caminhada, mas consola que estavam subindo constantemente. 

Tabela 1. Brasil – Aprendizado Adequado – 1995-2015 (Ideb) (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

2015

4a/5o – EF – Matemática

19.0

21.4

14.4

14.9

15.1

18.7

23.7

32.6

36.2

39.5

42.9

4a/5o – EF – L. Portuguesa

39.3

35.5

24.8

23.7

25.6

26.6

27.9

34.2

40.0

45.1

54.7

8a/9o – EF – Matemática

16.8

16.7

13.2

13.4

14.7

13.0

14.3

14.8

16.9

16.4

18.2

8a/9o – EF – L. Portuguesa

37.5

31.8

18.6

21.8

20.1

19.5

20.5

26.3

27.0

28.7

33.9

3a EM – Matemática

11.6

17.9

11.9

11.6

12.8

10.9

9.8

11.0

10.3

09.3

07.3

3a EM – L. Portuguesa

45.4

39.7

27.6

25.8

26.9

22.6

24.5

28.9

29.2

27.2

27.5

Fonte: Todos pela Educação.

Nos anos finais, a figura muda drasticamente. Em matemática, o aprendizado adequado em 1995 foi de 16.8%, chegou a 13.2% em 1999, arrastando-se até 18.2% em 2015 – 20 anos perdidos, indicando dificuldade extrema de sair do lugar. Em língua portuguesa, em 1995 tínhamos 37.5%, que viraram apenas 18.6% em 1999, e acabamos em 2015 com 33.9%, abaixo do início do período – 20 anos mais que perdidos. Os licenciados parecem não dar conta do recado, naquilo que o aprendizado adequado poderia depender deles. No ensino médio, a tragédia se consuma. Em matemática, o aprendizado adequado começou em 1995 com 11.6% (uma cifra já dantesca), virou 10.9% em 2005, e ficou em ínfimos 7.3% em 2015 – andando para trás, de maneira chocante. Em língua portuguesa, começamos em 1995 com 45.4%, caímos para 22.6% em 2005, não se recuperando mais: em 2015, a cifra foi de 27.5% (17.9 pp abaixo de 1995 – ostensivamente parada no tempo, bem atrás do início do período).

Encontramos na média nacional do aprendizado adequado um perfil persistente, que assim podemos sumariar:

a) anos iniciais vivem mundo à parte, embora façam parte do mesmo ensino fundamental – o âmbito do pedagogo tem desempenho muito diferenciado, surpreendendo mais ainda matemática;

b) anos finais prenunciam uma estagnação/queda preocupante, em matemática e língua portuguesa, embora esta mostre cifras superiores de desempenho;

c) ensino médio é uma “tragédia” (para ecoar a percepção do atual Ministro da Educação), indicando fracasso redondo escolar; considerando que anos finais e ensino médio são da competência do licenciado, este sai muito arranhado na foto, ainda que o problema, de modo algum, seja apenas dele;

d) observa-se queda maior em 1999 – logo após a LDB definir os 200 dias letivos anuais; os dados sugerem que o aumento de aula foi contraproducente; isto se confirma depois, com a introdução do 9o ano no ensino fundamental: foi muito contraproducente, como aparece nos anos finais.

Pode-se, então, aferir disso que, enquanto a escola, nos anos iniciais, revela um alento de subida (impressionando mais matemática), ligado em parte ao pedagogo, nos anos finais e ensino médio, a atuação do licenciado pode ser amplamente contestada, evitando-se naturalmente decretá-lo culpado sozinho.

Admitindo-se que ele faz na escola o que fizeram com ele na faculdade, cumpre arguir a universidade – visivelmente produz um licenciado inadequado, mesmo levando-se em conta as precariedades certamente gritantes da escola (em particular a pública).

No Distrito Federal (Tabela 2) poderíamos esperar uma situação bem evoluída, tendo em vista sua herança federal e também por deter os melhores salários do país (Demo, 2015). Longe disso, porém. Nos anos iniciais, em matemática, o aprendizado adequado em 1995 foi de 20.4%, regrediu para 18.3% em 1999, mas avançou bastante depois, até chegar a 52.1% em 2009, onde ficou patinando até 2015; embora tenha ocorrido subida de 31.7 pp no período, incomodam muito tanto uma cifra ainda muito baixa e sobretudo estagnada. Em língua portuguesa, começamos em 1995 com 53.9%, a cifra desceu para 30.3% em 1999, chegando a 66.6% em 2015 – esta cifra já tem volume (2/3 dos estudantes aprendiam adequadamente), embora continue insuficiente. Assim, o desempenho do pedagogo é razoável, com percalços notórios, como a estagnação em matemática.

Tabela 2. Distrito Federal – Aprendizado adequado 1995-2015 (Ideb) (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

2015

4a/5o – EF – Matemática

20.4

20.1

18.3

25.9

26.0

37.1

39.0

52.1

53.0

53.3

52.1

4a/5o – EF – L. Portuguesa

53.9

33.4

30.3

35.8

43.2

43.8

45.7

52.8

57.9

60.8

66.6

8a/9o – EF – Matemática

28.0

20.0

21.3

18.8

19.0

25.5

22.1

22.6

24.4

22.8

22.6

8a/9o – EF – L. Portuguesa

49.1

39.7

22.0

28.7

25.4

29.5

29.0

34.7

36.2

36.6

40.8

3a EM – Matemática

31.5

36.2

22.0

17.9

22.7

23.6

17.8

17.7

15.8

17.0

12.8

3a EM – L. Portuguesa

65.5

55.8

42.8

40.9

39.4

40.6

43.3

38.4

40.3

40.2

41.1

Fonte: Todos pela Educação.

Nos anos finais, em matemática, o aprendizado adequado em 1995 foi de 28.0%, abaixou para 18.81% em 2001, postando-se em 22.6% em 2015, cifra inferior àquela de 1995 e visivelmente estagnada. Em língua portuguesa, começamos em 1995 com 49.1%, cifra que regrediu para 22.0% em 1999, e foi de 40.8% em 2015, abaixo do início no período. No ensino médio, em matemática, a cifra de 1995 foi de 31.5% e que virou 12.8% em 2015, andando flagrantemente para trás. Levando-se em conta que era a melhor cifra do país em 2015, aí temos uma ideia da “tragédia”. Em língua portuguesa, em 1995, tivemos 65.6%, que viraram apenas 41.1% em 2015 (24.4 pp abaixo do início e em estagnação).

Temos, pois, perfil similar aos resultados nacionais, com algum azedume a mais, por tratar-se da unidade federada da qual se esperaria o melhor desempenho. A matemática do pedagogo subiu bem, mas parou desde 2009; a do licenciado era um desastre clamoroso. Levando-se em conta que o DF tem uma entidade devotada à formação continuada docente (EAPE –http://www.eape.se.df.gov.br), fica a pergunta muito incômoda se tais cursos não seriam contraproducentes, porquanto nunca chegam ao aprendizado adequado dos estudantes. Fica a impressão de que os cursistas saem “piorados”. Como os cursos espelham o etos da graduação universitária (em especial o que se chama de pós-graduação lato sensu – flagrantemente uma graduação piorada, muito longe de “pós”), tendem a confirmar a péssima formação acadêmica. Chama a atenção no DF que a matemática do pedagogo, em geral mais promissora, estagnou, desvelando problemas similares de formação original aos do licenciado.

São Paulo, por sua vez, também deveria ter desempenho expressivo (Tabela 3). Longe disso, porém. Nos anos iniciais, matemática, o desempenho adequado em 1995 foi de 25.7%, regrediu para 21.0% em 1999, e avançou até 59.3% em 2015 – subida de 33.6 pp, bastante acentuada. Em língua portuguesa, em 1995, a cifra foi de 46.5%, abaixou para 31.7% em 1999, mas chegou a 2015 com 67.9%, acima de 2/3, em subida nítida. Aparece um feito notável do pedagogo, até onde aprendizado adequado é mediação sua.

Tabela 3. São Paulo – Aprendizado adequado 1995-2015 (Ideb) (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

2015

4a/5o – EF – Matemática

25.7

24.8

21.0

23.3

23.9

26.9

32.8

46.5

47.0

54.8

59.3

4a/5o – EF – L. Portuguesa

46.5

41.4

31.7

35.3

36.0

38.0

37.5

45.6

49.1

59.0

67.9

8a/9o – EF – Matemática

23.1

18.0

13.9

15.9

20.8

15.1

16.5

16.3

19.3

19.7

22.7

8a/9o – EF – L. Portuguesa

47.8

29.9

18.2

25.7

24.4

24.3

24.2

31.0

32.4

32.9

39.6

3a EM – Matemática

14.4

10.0

12.9

12.6

11.9

15.2

10.7

12.5

11.4

11.7

09.0

3a EM – L. Portuguesa

57.6

33.9

29.9

29.7

26.4

25.5

28.3

33.6

35.9

35.9

32.3

Fonte: Todos pela Educação.

Nos anos finais, em matemática, começamos em 1995 com 23.1% e terminamos em 2015 com 22.7%, indicando inépcia total. Em língua portuguesa, começamos com 47.8% em 1995, descemos a 18.2% em 1999, e terminamos em 2015 com 39.6%, demonstrando extrema dificuldade de reação. No ensino médio, em matemática, o aprendizado adequado nunca engrenou: era de 14.4% em 1995 e de 09.0% em 2015, visivelmente andando para trás. Em língua portuguesa, começamos em 1995 com 57.6% e chegamos em 2015 a meros 32.3% (perdemos 25.3 pp no período). Assim, o estado mais rico do país está derrapando de maneira inacreditável, desvelando inépcia contundente. Comparando-se com anos iniciais, o desempenho em matemática em 2015 foi 36.6 pp inferior nos anos finais, e 50.3 pp no ensino médio. Em língua portuguesa, comparando-se com os anos iniciais, o desempenho nos anos finais esteve 28.3 pp abaixo e no ensino médio 32.3 pp abaixo.

E Minas Gerais (Tabela 4), o aprendizado adequado nos anos iniciais, em matemática, foi de 32.7% em 1995, desceu a 20.1% em 1999 e chegou a 56.1% em 2015 – uma cifra ainda baixa, mas em ascensão. Em língua portuguesa, começamos em 1995 com 53.6%, elevando-se a cifra para 66.4%, já razoável e em ascensão.

Tabela 4. Minas Gerais – Aprendizado adequado 1995-2015 (Ideb) (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

2015

4a/5a – EF – Matemática

32.7

45.9

20.1

26.9

26.6

35.0

32.3

51.5

53.7

54.9

56.1

4a/5a – EF – L. Portuguesa

53.6

61.0

34.7

35.6

38.3

41.1

34.9

49.6

55.1

59.1

66.4

8a/9a – EF – Matemática

22.9

20.3

15.9

19.3

17.0

20.1

20.0

23.8

27.1

25.0

24.3

8a/9a – EF – L. Portuguesa

46.8

39.0

22.3

25.2

19.9

23.9

25.0

35.2

37.5

38.3

40.9

3a EM – Matemática

13.3

50.1

11.2

12.9

15.6

19.7

13.9

15.2

15.4

12.4

09.6

3a EM – L. Portuguesa

48.5

65.2

32.4

25.9

29.5

28.1

31.6

32.0

35.6

30.2

30.0

Fonte: Todos pela Educação.

Nos anos finais, em matemática, em 1995 o aprendizado adequado foi de 22.9%, desceu para 15.9% em 1999, e chegou a 2015 com 24.3%, melancolicamente, em especial porque já esteve em 27.1% em 2011. Em língua portuguesa, tivemos, em 1995, 46.8%, caiu para 22.3% em 1999, e foi de apenas 40.9% em 2015. No ensino médio, em matemática, partiu-se de 13.3% em 1995, descendo em 2015 para 9.6%, sugerindo fracasso flagrante. Em língua portuguesa, tivemos, em 1995, 48.5%, ficando em 2015 em apenas 30.0% Este estado é frequentemente apontado como bem resolvido em educação, mas mais parece piada de mau gosto, nos anos finais e ensino médio. O contraste entre anos iniciais e anos finais/ensino médio é clamoroso.

Apenas para realçar a discrepância entre estados arrolo a situação do Maranhão, um dos mais precários (Tabela 5). Nos anos iniciais, matemática, em 1995 o aprendizado adequado foi de 08.1%, que desceu para 05.3% em 2001 e ficou em 19.0% em 2015 – apesar da subida, a cifra era ridícula, desdizendo a melhor fama da matemática do pedagogo. Em língua portuguesa, em 1995 começamos com 27.3%, chegou a 12.1% em 2001 e subiu para 33.8% (com um salto notável entre 2013 e 2015 de 10.4 pp); mesmo assim, um desempenho horrível.

Tabela 5. Maranhão – Aprendizado adequado 1995-2015 (Ideb) (%)

Anos

1995

1997

1999

2001

2003

2005

2007

2009

2011

2013

2015

4a/5o – EF – Matemática

08.1

12.2

05.7

05.3

05.6

06.6

12.7

11.9

15.1

16.4

19.0

4a/5o – EF – L. Portuguesa

27.3

27.4

15.3

12.1

12.3

13.7

16.2

15.0

21.8

23.4

33.8

8a/9o – EF – Matemática

04.1

06.5

05.3

06.1

05.5

05.1

06.1

06.3

08.2

06.6

08.0

8a/9o – EF – L. Portuguesa

15.9

18.3

08.1

10.9

09.4

10.4

11.4

14.3

16.1

16.7

21.1

3a EM – Matemática

04.1

13.8

05.3

06.7

08.8

04.7

03.0

04.3

03.3

02.8

01.5

3a EM – L. Portuguesa

19.2

24.9

14.7

15.4

26.3

09.6

13.3

16.1

15.3

12.2

15.1

Fonte: Todos pela Educação.

Nos anos finais, matemática, em 1995 tivemos 04.1% que viraram 08.0% em 2015 – apesar de ter sido quase o dobro no período, a cifra é um escândalo. Em língua portuguesa, partimos em 1995 de 15.9%, elevando-se a 21.1% em 2015, também muitíssimo insuficiente. No ensino médio, matemática, começamos com 04.1% em 1995, passando a 01.5% em 2015 – um desastre completo. Em língua portuguesa, a cifra de 19.2% em 1995 murchou para 15.1% em 2015, indicando regressão penosa. As cifras dos anos iniciais eram melhores, mas completamente insatisfatórias, sugerindo que a precariedade do licenciado é provavelmente a mesma do pedagogo. A Tabela 6 reforça esta percepção da precariedade do alfabetizador. Em leitura, após três anos (como manda a lenda do MEC), havia nos dois estados mais bem classificados (Minas Gerais e Santa Catarina) com ainda quase 40% de estudantes não alfabetizados, o que se repetiu em matemática. Havia três estados (Sergipe, Maranhão e Alagoas) com mais de 80% analfabetos em leitura e três em matemática (Alagoas, Amapá e Maranhão).

Tabela 6. Proporção de estudantes nos níveis mais baixos da alfabetização (1 e 2) (2014) (3o ano)

LEITURA

ESCRITA

MATEMÁTICA

1-MG

38.66

15-RR

67.37

1-SC

21.57

15-RR

44.61

1-SC

37.99

15-RR

68.17

2-SC

39.43

16-TO

68.37

2-PR

26.08

16-TO

46.13

2-MG

40.55

16-PE

70.09

3-SP

42.53

17-AM

69.18

3-SP

28.05

17-PE

50.49

3-SP

40.95

17-TO

70.37

4-PR

46.11

18-PE

71.16

4-MT

33.52

18-RN

51.76

4-PR

45.82

18-AM

71.62

5-DF

49.73

19-RN

72.57

5-GO

33.71

19-AM

56.06

5-ES

49.56

19-RN

75.34

6-ES

50.06

20-PB

76.07

6-RS

34.14

20-AP

56.62

6-RS

49.66

20-PB

76.40

7-RS

50.97

21-PI

77.33

7-MG

34.77

21-PI

56.92

7-DF

50.08

21-BA

78.11

8-GO

51.81

22-BA

77.64

8-DF

35.33

22-AL

58.47

8-GO

53.69

22-PI

78.87

9-CE

52.07

23-PA

78.06

9-MS

38.35

23-PA

59.24

9-CE

57.17

23-SE

79.58

10-AC

52.80

24-AP

79.54

10-ES

39.37

24-BA

59.45

10-MT

57.23

24-PA

79.79

11-MS

53.55

25-SE

80.65

11-RO

39.65

25-SE

59.54

11-MS

57.89

25-AL

81.27

12-MT

55.03

26-MA

80.89

12-AC

40.85

26-MA

61.13

12-RO

58.39

26-AP

82.80

13-RO

56.89

27-AL

81.56

13-RJ

41.71

27-PB

60.20

13-RJ

59.18

27-MA

83.11

14-RJ

57.25

 

 

14-CE

44.50

 

 

14-AC

59.48

 

 

Fonte: Inep (ANA).

Escrita mostrou precariedade menor, talvez surpreendentemente, porque é difícil entender como escrita pode ser mais fácil que leitura. Deixando isto de lado, nota-se na Tabela que o alfabetizador não dá conta de sua tarefa, mesmo tendo o MEC alargado o prazo para até três anos.

Acrescento ainda duas Tabelas do Ideb 2005-2015, sobre proficiência, para Brasil e Distrito Federal, com a intenção de enfatizar o fraquíssimo desempenho escolar, em especial na escola privada, em geral tida como campeã do conteudismo. A Tabela 7 apresenta o perfil da proficiência no país, onde vemos que só se atingiu a meta para 2015 no setor púbico nos anos iniciais. O setor privado não atingiu a meta em nenhum caso. A proficiência na escola pública foi de 3.6 em 2005 nos anos iniciais, chegando a 5.3 em 2015 (avanço modesto de 1.7 ponto em dez anos), um pouco acima da meta; na escola privada, passou-se de 5.9 em 2005 para 6.8 em 2015, abaixo da meta, e com avanço ainda mais modesto de 0.9 ponto.

Tabela 7. Ideb – Brasil 2005-2015

Anos Iniciais

 

2005

2007

2009

2011

2013

2015

Meta 2015

Pública

3.6

4.0

4.4

4.7

4.9

5.3

5.0

Privada

5.9

6.0

6.4

6.5

6.7

6.8

7.0

Anos Finais

Pública

3.2

3.5

3.7

3.9

4.0

4.2

4.5

Privada

5.8

5.8

5.9

6.0

5.9

6.1

6.8

Ensino Médio

Pública

3.1

3.2

3.4

3.4

3.4

3.5

4.0

Privada

5.6

5.6

5.6

5.7

5.4

5.3

6.3

Inep – Ideb.

Nos anos finais, a escola pública começou em 2005 com 3.2 de proficiência, chegando a 4.2 em 2015, avanço de apenas 1.0 e abaixo da meta. A escola privada começou com 5.8 em 2005, subiu a 5.9 em 2009, a 6.0 em 2011, voltou a 5.9 em 2013, chegando a 2015 com 6.1, abaixo da meta e com avanço desprezível de 0.3 ponto. No ensino médio, a escola pública passou de 3.1 em 2005 para 3.5 em 2015, abaixo da meta, com avanço horrível de apenas 0.4 ponto. A escola particular começou em 2005 om 5.6, aí ficou até 2009, subiu minimamente para 5.7 em 2011, desceu para 5.4 em 2013, e para 5.3 em 2015 – não só ficou abaixo da meta (em 1.0 ponto), como mostrou queda no período de 0.3 ponto. A escola privada sempre tem proficiência relativa maior que a escola pública, mas, mesmo assim, detém crise possivelmente mais grave que a pública, por estar empacada nos anos finais e declinante no ensino médio.

No Distrito Federal (Tabela 8), nos anos iniciais a proficiência medida pelo Ideb foi em 2005 de 4.4 na escola pública, subindo para 5.6 em 2105, abaixo da meta e com avanço de 1.2 ponto no período. A escola privada começou com 6.4 e chegou a 7.1 em 2015, abaixo da meta, com avanço de 1.3 ponto.

Tabela 8. Ideb- Distrito Federal 2005-2015

Anos Iniciais

 

2005

2007

2009

2011

2013

2015

Meta 2015

Pública

4.4

4.8

5.4

5.4

5.6

5.6

5.8

Privada

6.4

6.1

6.5

6.8

6.9

7.1

7.3

Anos Finais

Pública

3.3

3.5

3.9

3.9

3.8

4.0

4.5

Privada

6.0

5.9

5.8

6.0

6.1

6.0

6.9

Ensino Médio

Pública

3.0

3.2

3.2

3.1

3.3

3.5

3.9

Privada

5.9

5.5

5.6

5.6

5.7

5.6

6.6

Inep – Ideb. 

Nos anos finais, a escola pública mostrava, em 2005, 3.3, que viraram, em 2015, 4.0 – avanço de apenas 0.7 ponto, abaixo de meta. Na escola privada, iniciou-se em 2005 com 6.0 e tivemos a mesma cifra em 2015, indicando estagnação flagrante e abaixo da meta. No ensino médio, a escola pública tinha 3.0 de proficiência em 2005, chegando a 3.5 em 2015, abaixo da meta, com avanço minúsculo de 0.4 ponto no período. Na escola particular, a cifra de 2005 foi de 5.9 e em 2015 de 5.6, regredindo 0.3, e abaixo da meta. Assim, no DF não se atingiu a meta nem no setor público, nem no privado, indicando tendência estagnante no setor público e declinante no privado. A escola que mais alardeia instrucionismo conteudista é a que denota maior crise.

II. Graduações farsantes

Este cenário, em si muito lamentável de modo geral, permite uma avaliação indireta da formação de graduados na universidade, visualizados aqui no pedagogo e em dois tipos de licenciados: o de matemática e o de língua portuguesa. Para que fique claro, não podemos debitar de modo mecanicista o fracasso do estudante ao licenciado ou pedagogo, por pelo menos duas razões, como já aludimos. Uma é estatística – correlação estatística estabelece associação de variáveis, não causação. Não é viável, por exemplo, separar claramente a parte que cabe a este ou àquele professor na formação do estudante, para se poder indicar com quanto cada qual contribuiu. Em alguns países pratica-se esta correlação forçada e fraudulenta, para arranjar álibis para “responsabilizar” o professor, a ponto de o demitir (Amrein-Beardsley, 2014. Russakoff, 2015. Owens, 2013). A outra razão é neurocientífica – a aprendizagem não ocorre na aula, mas na mente do estudante, em contexto de autoria; a atividade docente é mediadora, não causadora, sendo, pois, fator externo, embora importantíssimo (Demo, 2015a). O professor não pode ler, estudar, pesquisar, elaborar pelo estudante, assim como os pais não podem viver a vida do filho. A aula forja a quimera de que “causa” a aprendizagem, sem qualquer base científica. A figura central na aprendizagem é o aprendiz. Assim, este pode não aprender por inúmeras outras razões, externas e internas (Pink, 2009).

No âmbito interno, pode ser por falta de ânimo, ou por desinteresse, ou por não saber apreciar a oportunidade, ou por ojeriza, ou por imaturidade, ou por má vontade explícita etc. No âmbito externo, pode ser por conta da pobreza extrema socioeconômica, ou por falta de apoio familiar (dos pais sobretudo), ou por viver em periferias violentas e inóspitas, ou por ter de trabalhar precocemente, ou por ingerência do tráfico de drogas, ou por más companhias, etc. Quando se discute o desempenho pífio americano no PISA, facilmente se aponta para a questão da pobreza. Enquanto na Finlândia a pobreza é residual (talvez 5% dos estudantes sejam pobres), nos Estados Unidos a pobreza pode chegar a perto dos 30%. Se retirarmos os pobres da amostra americana, o desempenho se torna similar ao europeu (Ravitch, 2013. Ripley, 2013). Uma coisa é lidar com estudante rico (escola particular), outra com estudante pobre (caso típico da maioria das escolas públicas).

Por essas duas razões, não se pode incriminar diretamente o professor, embora exista uma “associação” entre desempenho docente e discente, algo que todos aceitam, sendo esta a razão para termos professor na escola. Ou seja, valorizamos o professor por ter ele contribuição substancial na aprendizagem discente, da ordem da mediação. Esta mediação está em xeque. Não postulamos “causação”, como faz o instrucionismo quando coloca aula, prova e repasse como razão de ser da escola, não a autoria discente. Tomando-se em conta, então, apenas a associação ou mediação, a situação indicada pelos dados é dramática, sugerindo um despreparo lancinante por parte do licenciado enfaticamente, mas também do pedagogo, embora este tenha algum êxito nos anos iniciais. O desempenho do pedagogo sai bastante arranhado na ANA, mas tem impressionado que “sua” matemática seja a que ainda funciona na escola, enquanto a do licenciado é um desastre intenso. Parece, assim, que a universidade não forma minimamente os professores – estes não aprendem, mas querem ensinar, construindo uma relação ensandecida: ensina quem não aprende. Neste contexto, temos alguns desafios analíticos. Comecemos pela discrepância gritante entre anos iniciais e finais no ensino fundamental.

1.      Pedagogo vs licenciado

A discrepância ostensiva entre desempenho nos anos iniciais e finais sugere discrepância similar entre pedagogo e licenciado. O que teria o pedagogo que o licenciado não tem? Recordemos que existe o estereótipo contra o pedagogo, em parte porque pedagogia tem fama dúbia (para dizer o mínimo) na academia, vista como curso fraco, acolhendo a turma que busca algum lugar ao sol nas graduações, não tendo preparação mais visível, sobretudo em matemática e conteúdos assemelháveis. Não pretendo aqui alimentar estereótipos, porque são, como regra, jogos de poder forjados pela turma de cima, que se imagina superior. Naturalmente, existem hierarquias nos cursos oferecidos na universidade, duramente disputados nos vestibulares e exames do estilo, começando pela medicina (em parte porque vista como carreira muito nobre, se a sociedade vivesse de ideais, em parte porque pode ser bem rentável, na sociedade real), durando seis anos (mais residência), seguindo-se engenharias que duram cinco anos, exigem muita matemática e manejo tecnológico sofisticado. São disputados também cursos de direito e administração, porque se encaixam bem na lógica econômica, ainda que não sejam de produção, mas de gestão. Persiste, como sempre, a distância, por vezes transformada em provocação, entre ciências em geral, sobretudo exatas e naturais, e as “outras”, ditas humanas e sociais, onde aprecem a multidão de cursos menos “exigentes”.

Licenciaturas ocupam lugar mais elevado que as pedagogias, mas habitam a mesma penumbra de cursos “arranjados”, a começar pelo estigma de preparação para dar aula, do que segue que não se precisam de pesquisa, educação científica, habilidades metodológicas. Nos bacharelados facilmente aparece alguma menção à pesquisa e laboratório, porque, a rigor, não existe ciência apenas reproduzida; existe quando desconstruída e reconstruída. A aura maior da ciência é autoria, é o palanque maior da autoria humana (com seu píncaro nos Prêmios Nobel), onde exara sua capacidade de confrontar problemas e limites, transformando tudo em desafio, mesmo havendo nisto bem mais soberba que juízo. Licenciaturas tendem a ser cursos ostensivamente instrucionistas, porque têm em mente “deformar” um reprodutor de conteúdos curriculares. Licenciado em matemática é quem vai ensinar matemática na escola, não tendo, porém, aprendido minimamente matemática. A mistura de bacharelado e licenciatura deprime o curso mais ainda, porque não se faz bem nem um, nem outro.

O pedagogo, por sua vez, aparece nos dados como figura mais preparada que o licenciado, e logo onde menos se esperaria: em matemática. Por ironia do destino a matemática do pedagogo é a única que funciona, ainda que possa ser questionada, como faz o licenciado que recebe o estudante no sexto ano (começando os ditos anos finais) “analfabeto” em matemática, embora nem sempre confirmado pelos dados. Temos aí diálogo de surdos, porque, de um lado, dados facilmente indicam que nos anos iniciais matemática do pedagogo tem algum desenvolvimento, e tende a subir, enquanto de outro lado, os mesmos dados indicam um encalhe formidável em matemática nos anos finais, onde o licenciado cuida do terreiro. Seria a reclamação do licenciado apenas despeito? Um dos questionamentos feitos à matemática do pedagogo é que seria matemática do senso comum, cotidiana, que todos manipulam razoavelmente (ler preços, fazer troco, lidar com quantidades comuns etc.). Outra é que, tendo os estudantes nos anos iniciais como professor, em geral, apenas pedagogos, esta mixórdia não permitiria tratamento minimamente adequado (profissional) de nenhum conteúdo, enquanto todos são tratados por cima. ANA mostra claramente um alfabetizador muito insuficiente, empanando a imagem aparentemente positiva que os dados do Ideb poderiam sugerir. Se valer o estereótipo de que pedagogo é fugitivo de matemática, seu êxito teria alguma história mal contada. No entanto, aí vemos que estereótipos facilmente são inadequados ou mesmo “injustos” – à revelia da empáfia matemática, a que presta na escola é a do pedagogo! Alguém ainda poderia aventar que, estando todos os conteúdos nas mãos do mesmo professor, este “torce” para matemática e língua portuguesa, porque fazem parte do Ideb. Como se diz nos Estados Unidos, ensina-se para o teste, não para aprender (Berliner & Glass, 2014. Au, 2009), trambique comum em estratégias capciosas de incrementar o Ideb via “simulados” (avaliações semanais para garantir a retenção de conteúdo, não sua aprendizagem autoral).

No entanto, por mais que se busquem hipóteses explicativas, tratando-se anos iniciais e finais do mesmo sistema (ensino fundamental), fica um buraco por conta da discrepância extremada, que poderíamos resumir na perplexidade: nem o pedagogo é tão bom assim, nem o licenciado seria tão ruim assim. O licenciado terá alguma razão, quando vê a matemática do pedagogo como insuficiente (descontando a empáfia), enquanto o pedagogo não tem resolvido a alfabetização de modo minimamente convincente, nem com o Pnaic – a pedagogia não produz um alfabetizador profissional.

2. Agruras do licenciado

Se anos finais já prenunciam o fracasso dos licenciados, o ensino médio consuma a “tragédia”. O conteúdo mais massacrado é matemática, não só porque acusa cifras kafkianas, mas também facilmente em queda. A rigor, matemática não existe ou está em extinção. Resultados do PISA apenas confirmaram este deboche global: perto de 44% dos brasileiros ficaram abaixo do nível 1 (o nível 1 é o último; esses brasileiros ficaram abaixo do último nível). A Tabela 9 compara o desempenho no PISA da média europeia (OCDE) com a média brasileira. Em ciências, não havia praticamente ninguém brasileiro no nível mais elevado, concentrando-se 32.37% no nível 1a; havia ainda19.85% no nível 1b e 04.30% abaixo de 1b. Em leitura, era quase ninguém brasileiro no nível mais elevado, sendo a faixa mais habitada a de nível 1a, com 26.52%. Em matemática, quase 44% dos brasileiros ficaram abaixo do nível 1 (ou seja, abaixo do último nível)!

Tabela 9. PISA 2015

 

% Estudantes Ciências

% Estudantes Leitura

% estudantes Matemática

Nível

OCDE

Brasil

OCDE

Brasil

Nível

OCDE

Brasil

6

01.16

00.02

01.11

00.14

6

02.31

00.13

5

06.67

00.65

07.22

01.13

5

08.37

00.77

4

19.01

04.22

20.45

06.36

4

18.60

03.09

3

27.23

13.15

27.91

16.19

3

24.81

05.58

2

24.80

25.36

23.24

25.00

2

22.55

17.18

1a

15.74

32.37

13.59

26.52

1

14.89

26.51

1b

04.91

19.85

05.23

17.41

Abaixo de 1

08.47

43.74

Abaixo de 1b

00.59

04.30

01.25

07.06

 

 

 

Fonte: PISA/OCDE 

A média europeia neste nível mais baixo foi de 08.47%, ou cinco vezes menos. Sugerem os dados desempenho muito precário de estudantes de 15 anos de idade (portanto, refere-se mais propriamente à atuação do licenciado), em particular em matemática, indicando um país “de mal” com matemática. Observando a “rabeira” da proficiência, vê-se em ciências, enquanto a média da OCDE foi de 00.59%, a brasileira foi de 04.30; em leitura, na OCDE foi de 01.25%, e a brasileira de 07.60%. Em matemática, enquanto a OCDE concentrava 24.81% no nível 3, o Brasil ostentava 05.58%. Quando apenas 1.5% dos estudantes do ensino médio aprendeu matemática em 2015 no Maranhão, este fracasso não pode ser debitado ao professor, porque é um desastre coletivo, mas há alguma associação com a atuação docente. Ao mesmo tempo, quando a melhor cifra no ensino médio em matemática em 2015 foi a do Distrito Federal, com 12.8%, temos uma ideia da terra arrasada que é matemática.

Qual seria, então, a contribuição do licenciado em matemática para este fracasso matemático? Embora não seja o caso mensurar esta participação precisa ou detalhadamente – será sempre algo muito aproximado apenas – certamente há uma parte atribuível ao licenciado. Como a licenciatura é formatada de modo instrucionista ostensivo – “deforma-se” o licenciado para reproduzir conteúdos curriculares – temos uma problemática azedada em duas pontas: numa, temos alguém que não aprendeu, porque aprendizagem nunca foi foco da licenciatura; noutra, mesmo assim, imagina poder ensinar. Literalmente, ensina quem não aprende! A licenciatura fixa-se em procedimentos antiquados que não consegue questionar, postulando que a escola existe para repassar conteúdos e é papel do estudante engoli-los. Em especial em matemática, onde os conteúdos parecem fixos, acabados (teoremas, por exemplo), a didática dominante é de repasse, pura e simplesmente. “Pesquisar” matemática pode parecer proposta estranha, para reinventar a roda. Pode atrapalhar também que, pleiteando matemática validades universais, a despeito do teorema da incompletude de Gödel (Goldenstein, 2006), estas não poderiam ser questionadas, cabendo absorvê-las.A contribuição maior, porém, ao fracasso da matemática é não ter aprendido matemática como autor, exercitando sempre a postura do papagaio, como se pratica em qualquer licenciatura. Iniciativas de pesquisa, autoria, elaboração própria são inexistentes, porque, reza a bíblia, o professor tem como tarefa repassar conteúdo. Não precisa pesquisar, ser autor, ser cientista. Esta atitude mantém matemática como conteúdo passivo, espargindo expectativa de que é papel docente repassar conteúdo, como é papel discente engolir conteúdo.

Por isso, matemática na escola é reduzida a repasse sistemático, esperando-se que o estudante corresponda com a passividade da memorização. “Entender” matemática fica para matemáticos profissionais, nível que não parece possível na escola. Como ironiza Delpit (2012), “multiplicação é para gente branca” (no título)!Pobres vão até a soma! Como o professor não é autor de matemática, não concebe que aluno possa ser. Os próprios formalismos – achados, não construídos –  sugerem que podemos seguir repetindo aquilo que precisamente é repetido na realidade: suas formas. Isto tem afastado a possível atração da matemática inventiva, provocativa, instigante, usada para mexer com desafios, imprevisibilidade, incertezas.

3. Licenciado em matemática no ensino médio

É no ensino médio que o desempenho discente em matemática é uma tragédia. Tem-se a impressão de que estaria em extinção. Tomando em conta que o melhor aprendizado adequado no DF, em 2015, chegou a apenas 12.8% e o pior no Maranhão a 1.5%, fica a imagem de problema sem solução – uma cifra é kafkiana por conta de seu valor diminuto, quase invisível; a outra é completamente inaceitável, tomando-se em conta ainda que, em 1995, o aprendizado adequado foi de 31.5% no DF – como perdemos tantos pontos pelo caminho, ladeira abaixo? Para alguns, isto tem a ver com a empáfia matemática – sendo resultado de um estilo apurado e exigente de formação, reconhecidamente seletivo, o matemático facilmente se torna insensível aos simples mortais que apresentam grande dificuldade de entender. Facilmente vê nas dificuldades uma ignorância insanável. Outros apontam para o tradicionalismo didático: sempre se ensinou matemática desse jeito, não havendo, pois, razão para mudar. Era uso avaliar a qualidade do curso de matemática pelo extermínio progressivo dos estudantes – quanto menos chegavam a concluir, tanto mais qualitativo o curso. A manutenção desta seletividade faz parte da empáfia, cultivada no cenário da genialidade que marcou a muitos matemáticos extraordinários, como Newton, Leibniz, Einstein, etc., sem falar nos gregos antigos e outros da antiguidade que lançaram as raízes.

Sempre apreciamos distinguir entre a matemática para todos, como habilidade que deveria ser patrimônio social geral, e a matemática do matemático, que galga píncaros inacessíveis ao povão. Na escola é o caso curtir matemática para todos, e talvez isto seja a graça do pedagogo – como não é matemático profissional, sabe fazer a distinção e tem se dado bem melhor que o licenciado. Para o matemático profissional não basta esta “matematiquinha” infantiloide, para gente pequena. Prefere um céu onde pode voar sozinho. Certamente, existe “aptidão” matemática, aquela propensão natural que alguns têm, necessária para conseguir acompanhar o curso ou para tornar-se matemático profissional. Diríamos isso de outras habilidades, como música, esporte, artes cênicas etc., embora todos possam deter alguma parcela disso, via estudo. Muita gente aprecia música sem ser músico profissional. Seria fundamental que a população em geral apreciasse matemática, sem ser profissional.

Muitas vezes o matemático instiga a noção de matemática como bicho-papão, porque lhe interessa o destaque isolado. Gosta de ver-se como animal raro, sobretudo superior. É comum que matemático revele um tom de superioridade em face do pedagogo, por conta da história de cada curso. O de matemática sempre foi seletivo, cercado da aura de coisa difícil e para poucos, indicador de altivez intelectual. O de pedagogia sempre foi curso para pobre ou para gente mal dotada (exceto os vocacionados intensos), sem falar no estigma feminino. Enquanto, em certas faculdades da periferia cursos de pedagogia estão cheios, os de matemática são pouco procurados, é preciso torcer para se ter a turma cheia, e a mortalidade no curso pode ser altíssima. Na prática, porém, assiste a contragosto hoje a certo êxito do pedagogo nos anos iniciais, que não acha em seu terreiro, nem para começar. Tem de engolir que a única matemática prestável na escola é a do pedagogo. Reclama dela, porque lhe é inimaginável achar um rival que sempre achou inferior, embora possa ter sua razão – para suas pretensões, a matemática dos anos iniciais não é satisfatória, porque a vê com olhos profissionais. Está certo. A matemática dos anos iniciais precisa de aperfeiçoamento, sofisticação, aprofundamento. Mas tem desempenho, por vezes, inacreditavelmente superior ao do licenciado.

Em termos concretos, matemática no ensino médio sempre foi coisa malfeita e aprendizado adequado algo no máximo sofrível. Quando apareceram alguns índices mais elevados, como o do DF em 1995 (31.5%), em 2015 tinha menos da metade (12.8%). Um capital intelectual totalmente jogado fora. Assim, normalizou-se que no ensino médio matemática é um suplício ou estrupício, que precisamos aguentar, porque consta do currículo e consta no Ideb. Continuam raros os estudantes que por ela se interessam, como se fosse gente estranha. Assim, quando apenas 1.5% dos estudantes do ensino médio aprendeu matemática em 2015 no Maranhão, a miséria sequer causa maior impacto, porque está dentro do esperado. Aprender mal é normal! Não refletimos sobre os estragos que a falta de matemática pode causar, em termos de lacuna para a formação, para chances de emancipação, para a comunicação em sociedade, para acompanhar procedimentos científicos, para não ser passado para trás (Demo, 2016a). Nem o MEC toma providência. Para que, então, fabrica dados?

4. Licenciado em língua portuguesa

As cifras em língua portuguesa costumam ser bem superiores às de matemática (talvez pela ordem de três vezes no ensino médio, como no caso das médias nacionais: enquanto o aprendizado adequado em matemática foi de 07.3%, o de língua portuguesa chegou a 27.5%). No entanto, havia caído de 45.4% em 1995 para 27.5% em 2015, ou seja, não só um declínio clamoroso, mas estagnado desde 1999 (Tabela 1). Vê-se que há problemas muito graves também em língua portuguesa, embora haja uma distinção marcante: matemática sempre foi ruim (em 1995, o aprendizado adequado foi de 11.6%, ou seja, 33.8 pp abaixo do desempenho em língua portuguesa naquela data), enquanto língua portuguesa ostentou cifras elevadas (relativamente, claro) em 1995, mas vai caindo ou estagnando de maneira flagrante.

No DF, tivemos desempenho relativamente “elevado” em matemática em 1995 (31.5%) que caiu para meros 12.8% (ainda assim, o melhor índice do país em 2015), mas é algo excepcional. No caso de língua portuguesa, a cifra em 1995 foi de 65.5%, mas que estava mais de 20 pp abaixo em 2015 (41.1%). São Paulo anotou uma queda incisiva em língua portuguesa: tinha 57.6% em 1995, e apenas 32.3% em 2015. Esta situação sugere que em língua portuguesa estamos visivelmente “piorando” a formação universitária, ao contrário de matemática que sempre foi mais problemática. No Maranhão, matemática “nunca existiu” propriamente (o maior índice na série foi de 08.8% em 2003 – em 1995 foi de 04.1% e em 2015 de 01.5%); língua portuguesa teve seu maior índice em 1995, com 19.2%, abaixando para 15.1% em 2015. Podemos reconhecer que nunca foi minimamente satisfatório, mas já foi um pouco melhor. Ao final, ambas as situações eram dantescas.

A pergunta talvez então seja: como se consegue piorar o licenciado? Esta situação era ainda nítida no DF, porque a atuação da EAPE não tem efeito algum sobre o aprendizado adequado dos estudantes em queda livre. Seria possível fazer um curso no qual o cursista piore? Parece bem possível. Hoje podemos dizer isso das pós-graduações lato sensu – não valem mais nada. Por isso, ter “especialização” não acrescenta nada. Isto nos remete a uma questão incômoda: a universidade em decadência nas licenciaturas. Penso que os dados “insinuam” isso com veemência, a ponto de não ser mais o caso aumentar os licenciados em falta no mercado, mas postular um “licenciado completamente diferente”. Demandaria isso mexer profundamente nas graduações, em especial na licenciatura (e em menor grau, na pedagogia). Se o licenciado faz na escola o que fizeram com ele na faculdade, esta é posta em xeque frontalmente. Não se formam profissionais da aprendizagem, apenas ensinadores, auleiros decadentes. Quem não consegue aprender, não tem como conseguir que seus estudantes aprendam.

5. Pedagogos

Não deixa de ser uma ironia do destino que pedagogia receba um afago tão insinuante no Ideb dos anos iniciais. Acostumada a ser saco de pancadas, vê agora sua chance começar a brilhar. Não podemos nos apressar nos elogios, porque a forja é a mesma e em alguns momentos os dados apontam para mazelas gritantes na pedagogia, em especial na alfabetização. Em São Paulo, o aprendizado adequado em matemática nos anos iniciais em 2015 foi de 59.3% e em língua portuguesa de 67.3% – podemos reclamar das cifras, são mesmo ainda muito baixas, não justificando a escola plenamente, mas são parrudas, relativamente. Os estados onde o pedagogo mais se destacou foram os do Sul, mais São Paulo e Minas Gerais, e Distrito Federal. Em Santa Catariana o aprendizado adequado em língua portuguesa chegou a 69.3%, o maior do país.

Têm impressionado mais ainda o avanço em matemática, precisamente porque persiste a pecha de que não é seara do pedagogo (em geral foge dela). Em São Paulo, Santa Catarina e Paraná, este desempenho chegou aos 59% – muito baixo ainda, mas já vistoso, se levarmos em conta a miséria da matemática aí nos anos finais e ensino médio. Então, apesar de reconhecermos que pedagogia precisa melhorar muito, em especial superar o gargalo infame da alfabetização, ela mostra alguma vitalidade, que espanta um pouco porque não se espera, mas deveríamos esperar. Sempre afirmei que pedagogia é o curso mais importante da universidade, porque define o que é aprender. É o curso mãe. Se o curso realmente se voltar para este cenário da aprendizagem, procurando fazer do pedagogo o protótipo do profissional da aprendizagem, teríamos que colher os resultados, finalmente. Parecem estar chegando, devagar. Persistem os estereótipos na praça, em especial em cursos de pedagogia noturnos e não presenciais, mas, mesmo assim, parece que aí se constrói um profissional um pouco mais a prumo.

Ouve-se também que pedagogos, mais facilmente, mostram-se interessados na questão do estudante, procuram achegar-se aos problemas de aprendizagem dele, apresentam disposição para contornar a questão, de certa forma reconhecendo que a didática vigente não é satisfatória. Enquanto isso, o licenciado, em especial o de matemática, não “se lixa” com os estudantes, não está disposto a rever sua trajetória formativa, preconiza-se como profissional do ensino, que interpreta como “dar aula” e ponto final. A realidade crua é, então, esta: se o curso de pedagogia é muito insatisfatório, o das licenciaturas, deus me livre!

III. Universidade  Esquizofrênica

A Universidade mantém dois formatos de formação, claramente antípodas, embora sob o mesmo teto (daí “esquizofrenia”). Quando se volta para formar um pós-graduado stricto sensu (mestres e doutores), segue uma trilha amplamente reconhecida no mundo todo, a da pesquisa. Embora existam infindos questionamentos da pós-graduação stricto sensu (como a rejeição de muitos do mestrado profissionalizante, a exigência em queda de rigor acadêmico nas teses, os arranjos sensacionais das bancas de tese, as gangues de avaliação dos cursos, das revistas de ponta, das classificações no CNPq etc.), há acordo que o procedimento básico de formação é produção própria, ou autoria. A pretensão frontal é formar um autor. Muitos cursos dão aula também, prescrevem provas e outros procedimentos tradicionalistas inoperantes, porque isto é parte da história instrucionista universitária. Mas o procedimento definidor é pesquisa, autoria. O candidato precisa conceber um “objeto de pesquisa” (um projeto de pesquisa), arrumar um orientador que o aprove e suporte, submeter a uma banca de qualificação, fazer a pesquisa, ter o aceite do orientador e defender em público. Tudo para que emerja daí um autor. Vale a expectativa de que sociólogo, por exemplo, é quem se torna “autor de sociologia”, stricto sensu.

No entanto, isto não vale para a graduação. Nesta, aula/prova/repasse bastam, replicando um modelo suicida secular, que vai redundar, entre coisas, no fracasso dantesco que se abate sobre nossa escola e os docentes formados em tais graduações. A Universidade sabe o que é aprender, também porque é o templo das grandes teorias da aprendizagem e da pesquisa constante sobre aprendizagem, mas aplica isso à sua elite, separadamente. A “boiada” é tangida a relho. Esta condição torna-se ainda mais grotesca, ao vermos que o Pibic, vigente há três décadas, indica frontalmente que a melhor graduação é do estudante do Pibic (Calazans, 1999). Nunca, porém, saiu da condição de programa experimental. Aprender via pesquisa continua excepcional na graduação. A esquizofrenia reponta de novo no PBL da medicina – sendo esta o curso mais complexo, longo e temerário, caiu-lhe a ficha que o melhor médico é o cientista pesquisador, não o papagaio da graduação. Esta metodologia da “problematização” ou do “projeto” (ou da pesquisa) vem se intensificando, à medida que a pesquisa acadêmica em aprendizagem a abona incisivamente. Aprendizagem é sempre autoria, profundamente. Não aparecendo autoria do estudante, não existe aprendizagem. Não se dá por aula (Demo, 2015a), pois é fenômeno que se gera na mente do estudante. Lá o professor não entra, embora possa/deva mediar a atividade própria estudantil.

Outra face da esquizofrenia é que o doutor, tendo-se formado doutor através da pesquisa/autoria, entrando na sala de aula, “só dá aula”, suicidando-se. Reclama-se muito disso globalmente (Bok, 2006. Arum & Roksa, 2011; 2014. Duderstadt, 2003), porquanto parece um acinte não oferecer ao estudante de graduação a chance que o elevou a autor. Consagra-se um princípio espúrio, cientificamente falando, que é do repasse linear de conteúdo, completamente impossível biologicamente (Maturana, 2001. Demo, 2002), porque a mente não funciona como esponja. Funciona como “autora”, por condição evolucionária biológica – o que nela entra, entra por reconstrução própria, interpretação ativa, participação nítida. Cabe sempre a pergunta, por que, havendo pesquisa flagrante que afirma ser aprendizagem processo de formação da autoria, a Universidade ignore tão olimpicamente, a ponto de se apresentar ao público como lugar onde só existem, na graduação, aula, prova e repasse, todas atividades espúrias à aprendizagem? Alguns cursos incluem laboratório, o que pode melhorar muito a oportunidade de aprender alguma coisa, à medida que o estudante, em pessoa, constrói seu resultado. De modo geral, contudo, Universidade é cemitério de aula, com professores como coveiros insistentes.

É parte também desta esquizofrenia manter a noção pré-histórica de que conhecimento é produto acabado, inerte, fixo, a ponto de caber ao professor apenas “repassar” e ao estudante apenas “absorver”. Produzem-se, então, dois papagaios – no docente que declama os livros-texto, as apostilas, a internet; no estudante, que repete apenas, como penduricalho. Nunca conhecimento foi isso, porque é expressão maior da inventividade humana inesgotável, carecendo de autorrenovação permanente. Mais que isso, considera-se conhecimento a dinâmica mais apropriada de autorrenovação, um dos fundamentos, por exemplo, do PBL – médico preferível é quem se renova sempre; por isso, medicina precisa ser produzida autoralmente, não absorvida subalternamente. A graduação é, assim, um teatro dantesco, onde temos o que Bauman chamaria de “vidas desperdiçadas” (2005) e Santos de “desperdício da experiência” (2000). Graduandos são literalmente “vítimas de aula”.

Deste questionamento, segue que a graduação só teria a ganhar se fosse montada “no espírito” do doutorado – feita com autoria do estudante, tendo no professor o mediador/orientador. Esta ideia pode parecer estranha ou precipitada, mas é adotada em propostas de educação científica americana (Linn & Eylon, 2011. Slotta & Linn, 2009) desde o pré-escolar, mutatis mutandis. Pretende-se introduzir a criança de 4 anos de idade no mundo da ciência, respeitando sua propensão natural curiosa que gosta de saber das coisas, perguntar, duvidar, comprovar, já mexendo com experimentação, método científico, autorias possíveis (desenho pelo menos), pesquisa, para fazer dela protagonista de sua sociedade. Cabe ao professor estabelecer a dose que se aplica em cada caso – uma coisa é certamente lidar com criança de 4 anos, outra com um graduando ou doutorando, mas o “espírito” é o mesmo. Reduzir o estudante a absorvedor de conteúdo é fazer dele um debiloide, de quem se espera subalternidade total passiva. Nada tem a ver com aprendizagem, embora seja o procedimento canônico. Este procedimento é, muitas vezes, exacerbado quando se pretende “ensinar para o teste”, como é comum em escolas particulares: os estudantes fazem prova toda semana, evento precedido de uma hora e meia de estudo dirigido para garantir a fixação de conteúdo e devida regurgitação. Sai disso um Ideb falsificado, porque o procedimento é falso.

Creio que um dos males mais comprometedores da licenciatura seja este: o instrucionismo escrachado a que é submetido o estudante. Por se manter a ideia estapafúrdia de que o licenciado tem como tarefa apenas repassar conteúdo, não se coloca o desafio da autoria. Esta pareceria esnobe ou redundante, quando é essencial, a mais essencial. Primeiro, porque repassar conteúdo alheio nunca foi atividade importante, pois é, na verdade, parasitária (hoje, na internet estão “tudo” ou quase); a evolução também produz parasitas, mas o processo mais imponente é autoria biológica. Segundo, porque mero repasse não existe, mentalmente falando, a menos que seja decoreba, memorização crua. Se ocorrer entendimento do conteúdo, já não é repasse só, mas tratamento autoral, por mais incipiente que possa ser. Terceiro, porque aprendizagem não ocorre na aula, mas na mente do estudante, sendo aula mediação (em geral negativa). Estranha muito que a Universidade, repositório fundamental das grandes teorias da aprendizagem, negue suas conquistas tão descuidadamente, preferindo rituais vazios e destrutivos. Hoje este modelo instrucionista é pétreo. O estudante tem isso na cabeça como ordem das coisas. Vai à faculdade para frequentar aula. Depois dela, vamos embora. Não há mais nada. O pior é que este cadafalso é promovido por autores incoerentes, que são os professores mestres/doutores que “só dão aula”.

No caso mais dramático, que é do licenciado em matemática, o instrucionismo é ainda mais arraigado, porque se tem de matemática a noção estúpida de conhecimento fixo, universalmente válido e pronto, cabendo engolir. Pesa sobre o licenciado que sua função será apenas esta: repassar conteúdo fixo, sequencial, linear. É tamanha esta fixação, que a aprendizagem do estudante sequer lhe ocorre como desafio. Tendo repassado o conteúdo, vai embora. No dia seguinte, volta para repassar mais. Nisto expressa que ele mesmo não aprendeu matemática, não é autor de matemática, nunca produziu matemática; apenas reproduz como papagaio treinado. A noção de “autoria em matemática” lhe parece estranha, inventada, precisamente porque matemática já está “inventada”. Engano total. Bastaria olhar a história dos grandes matemáticos – foram grandes porque inventores, produziam matemática, faziam dela desafio nunca suficiente, infinito (Suri & Bal, 2010). Matemática não é fenômeno concluído ou concluível, como bem mostrou Gödel (Goldstein, 2006), tanto porque, no matemático, nunca existe conhecimento final (não há matemático final), quanto porque, na matemática, não temos como exarar seu fim. Certamente, matemática tem suas particulares, seu charme, sua constituição interna. É feita, em grande parte, de axiomas, teoremas, equações notórias, mas isto são marcos memoráveis, dignos de todo preito, mas como todo marco, marca passagem, não chegada. Por isso, é preciso trazer para matemática a ideia da autoria em matemática, não para reinventar a roda, mas para fazer da matemática conteúdo em ebulição, aberto, desafiador – um problema aberto, não uma fórmula pronta.

Muitas vezes, busca-se simplificar, encurtar, facilitar matemática, o que, para matemáticos e epistemólogos, não cabe (Laurillard, 2007. Ramirez, 2013). O valor maior da matemática está em seu poder de abstração, formalização, modelização, análise, o que lhe preserva lugar importante em conhecimentos com potencialidade emancipatória (Demo, 2016a; 2017). Sobretudo, o aluno com maior dificuldade não precisa de matemática “menor”; ao contrário, precisa da “maior”. Matemática pobre para o pobre, só o empobrece! Não segue daí que o licenciado force ainda mais a abstração para humilhar o pobre. Segue que é preciso fazer do pobre também autor de matemática. Esta é tarefa que dignifica o professor, mesmo tão desafiadora. Ajuda nesta empreitada um tratamento mais bem disposto da matemática na escola e na sociedade, implicando gincanas, torneios, competições, jogos, para animar a galera a participar de autorias matemáticas. Não vamos ignorar que matemática, em seus níveis mais abstratos, é desafio acentuado. Exige esforço, assiduidade, determinação. Isto, porém, não pode, jamais, ser confundido com decoreba ensandecida. Matemática precisa virar, com o tempo, patrimônio popular. Se olharmos para programação digital, que muitos exigem como alfabetização para todos, e que implica tratamento matemático exigente, deve estar ao alcance de todos, como toda alfabetização (Manovich, 2013. Rushkoff, 2010). Qual o espírito maior da programação digital? Colocar o computador ao dispor da autoria do usuário, não o contrário. Entre as maiores autorias que a humanidade elaborou estão as modelagens matemáticas. Não podem ser proibitivas.

A falta de profissionalismo, em termos de garantir a aprendizagem dos estudantes, está também numa formação sem estágio adequado. Este precisa começar já no segundo semestre, para teorizar as práticas e os problemas mais cabeludos nas escolas. Se os cursos são noturnos, o estágio é dificultado (há, porém, escolas básicas que funcionam à noite), mas não se pode ceder, porque é um desaforo o matemático chegar à escola sem saber por onde começar, sem ter noção do desafio que tem pela frente, dos gargalos maiores em que vai se meter. Todo licenciado teria que “ter resolvido” a contento problemas encardidos de aprendizagem na escola para poder concluir seu curso. Naturalmente, se espírito do doutorado baixar minimamente, vamos reorganizar os cursos por completo, retirando aulas e provas. Vamos avaliar os estudantes por sua produção constante, cada vez mais científica, rumando para a ideia de fazer de cada um “um cientista, um pesquisador, um autor”. Por que? Porque queremos que o estudante se faça cientista, pesquisador, autor, tal qual, mutatis mutandis, um doutor. O tempo de aula será tempo de estudo, pesquisa, elaboração, esticado para fora da instituição, sempre que for o caso. Há que permutar trabalho individual e coletivo (com preferência por este).

Reclama-se muito dos cursos à distância, em especial na formação de professor. É um cuidado extremamente importante, mas está, quase sempre, fora de lugar. Primeiro, não se distinguem mais cursos por serem presenciais ou não presenciais, mas por serem de presença física e/ou virtual (de preferência híbridos) (quem estuda está presente). Segundo, pode-se, sim, aprender em condições virtuais, porque aprendizagem se dá na mente do aprendiz, não na aula do professor,nem na sua presença; depende do aprendiz, substancialmente, o que sempre permite sugerir que cursos ditos à distância ficam melhor em pessoas mais maduras. Terceiro, quando se cotejam as duas modalidades (que deveriam, com o tempo, fundir-se numa só – cursos híbridos, com predominância da presença virtual), facilmente os de presença virtual são “melhores”, por incrível que pareça. Isto ocorre porque muitos se alistam em cursos virtuais esperando facilidades; não ocorrendo isso, desistem, sobrando os sobreviventes mais interessados (é um problema a baixa taxa de conclusão); estes facilmente são melhores, ainda que em número bem menor relativamente. A reação à presença física em geral trai a obsessão por aula, que jamais foi importante para aprender.

Sem pretender esgotar aqui esta discussão, é importante também investir nos candidatos em matemática para evitar a mortalidade mórbida dos cursos. Não se pode aceitar que seria critério de qualidade do curso o extermínio dos estudantes, para que só alguns completem. De todos os modos, o desafio não é aumentar licenciado em matemática, mas inventar “outro”. Insisti aqui em matemática porque é nosso desfiladeiro mais fatal, mas mutatis mutandis a análise cabe a qualquer licenciado. No fundo, trata-se de reinventar a graduação, no espírito do doutorado.  

Conclusão 

Fizemos, como prometido na introdução, uma avaliação das graduações na faculdade, ainda que indiretamente, via desempenho escolar dos licenciados e pedagogos. Tomamos o cuidado de não fazer vínculo mecanicista entre desempenho docente e discente, por razões discutidas acima. Apontamos apenas para a possível associação entre os desempenhos, e nisto constatamos discrepâncias gritantes, que questionam veementemente a formação acadêmica das graduações. O pedagogo tem posição mais confortável, principalmente considerando que se sai melhor logo em matemática, mas vem da mesma ferraria, sendo o caso também repensar a pedagogia radicalmente. O licenciado fica em situação particularmente vulnerável, porque anos finais e ensino médio indicam condições dantescas de aprendizado adequado. É um vexame sem nome. Este vexame não é patrimônio do “mau licenciado”, nem de longe, nem de perto. O fracasso da escola é um fracasso coletivo. Mas há uma parte devida ao licenciado. Embora não seja viável “medir” esta parte, é possível indicar faces aproximativas que permitiriam, ao lado de questionar, também reconstruir as licenciaturas na faculdade.

Não queremos mais os licenciados e pedagogos produzidos nas faculdades. Queremos “outros”, bem outros: autores.


Referências

AMREIN-BEARDSLEY, A. 2014. Rethinkingvalue-addedmodels in education: Criticalperspectives on tests and assessment-based accountability. Routledge, London.

ARUM, R. & ROKSA, J. 2011. AcademicallyAdrift: Limited Learning onCollege Campuses. University of Chicago Press, Chicago. 

ARUM, R. & ROKSA, J. 2014. Aspiringadultsadrift: TentativetransitionsofCollegeGraduates. Univ. of Chicago Press, Chicago.

AU, W. 2009. Unequal by Design – High-stakes testing and the standardization of inequality. Routledge, London.

BAUMAN, Z. 2005. Vidas Desperdiçadas. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

BERLINER, D.C. & GLASS, G.V. 2014. 50 myths and lies that threaten America’s public schools: The real crises in education. Teacher College Press, N.Y.

BOK, D. 2007. OurUnderachievingColleges: A candid Look athowmuchStudentsLearnandwhytheyshouldbe Learning more. Princeton University Press, Princeton.

CALAZANS, J. (Org.). 1999. Iniciação Científica: Construindo o pensamento crítico. Cortez, São Paulo.

DELPIT, L. 2012. “Multiplication is for white people”: Raising expectations for other people’s children. The New Press, London.

DEMO, P. 2002. Complexidade e Aprendizagem – A dinâmica não linear do conhecimento. Atlas, São Paulo.

DEMO, P. 2015. Professor eterno aprendiz. Alphabeto, Ribeirão Preto.

DEMO, P. 2015a. Aprender como Autor. Atlas, São Paulo.

DEMO, P. 2016. Pedagogias Positivistas – https://docs.google.com/document/d/1V7s5GlzdOT3Bs-Y2CYbEWcUAY8Fq4KjGkdF8vcJEgVg/pub

DEMO, P. 2016a. Politicidade da matemática – https://docs.google.com/document/d/1yNscG9fM6B6FS5R1raWsF1f_dnI8lzNhUjjBuD2g-tI/pub

DEMO, P. 2016b. Toupeiras pedagógicas – A propósito dos dados do Saeb/Ideb 2015 – https://docs.google.com/document/d/134WCqhjGqzrkSIgMVgJ8C5isPfAvwVcAP2qBQm8JTJU/pub

DEMO, P. 2017. Força do pensamentoabstrato – Modelagensformaispodemserefetivas – https://docs.google.com/document/d/1N5lQ9sew13cQj32tPdtHxr5K5M7LJ8-oo8bJTiZEXwU/pub

DUDERSTADT, James J. 2003. A University for the 21st Century. The University of Michigan Press, Ann Arbor.

GOLDSTEIN, R. 2006. Incompleteness: The proof and paradox of Kurt Gödel. Norton &Company, N.Y.

HORN, J. & WILBURN, D. 2013. The MismeasureofEducation. IAP, Charlotte.

LAURILLARD, D. 2007. Rethinking University Teaching. Taylor & Francis, Abingdon.

LINN, M.C. & EYLON. B.-S. 2011. Science Learning andInstruction – Takingadvantageoftechnologytopromoteknowledgeintegration. Routledge, N.Y.

LUBIENSKI, C.A. & LUBIENSKI, S.T. 2013. The Public School Advantage: Why Public Schools Outperform Private Schools. University of Chicago Press, Chicago.

MANOVICH, L. 2013. Software takescommand. Bloomsbury, N.Y.

MATURANA, H. 2001. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Organização de C. Magro e V. Paredes. Ed. Humanitas/UFMG, Belo Horizonte.

OWENS, J. 2013. Confessions of a bad teacher: The shocking truth from the front lines of American public education. Amazon, N.Y.

PINK, D.H. 2009. Drive – The surprising truth about what motivates us. Riverhead Books, New York.

RAMIREZ, A. 2013. SaveOur Science: Howto Inspire a New GenerationofScientists. TED Conferences, N.Y.

RAVITCH, D. 2013.Reign of Error: The Hoax of the Privatization Movement and the Danger to America\’s Public Schools. Knopf, N.Y.

RIPELY, A. 2013.The Smartest Kids in the World: And How They Got That Way. Simon & Schuster, N.Y.

RUSHKOFF, D. 2010. Programorbeprogrammed. OR Books, N.Y.

RUSSAKOFF, D. 2015. The Prize: Who’s in charge of America’s Schools? Houghton Mifflin Harcourt, N.Y.

SANTOS, B.S. 2000. A Crítica da Razão Indolente – Contra o desperdício da experiência. Cortez, São Paulo.

SLOTTA, J.D. & LINN, M.C. 2009. Wise Science – Web-basedinquiry in the classroom. TeachersCollege Press, N.Y.

SURI, G. & BAL, H.S. 2010. A certainambiguity: A mathematical novel. Princeton U. Press, N. Jersey.

Recommended Articles

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *