Mundo sem filosofia

Dioclécio Campos Junior* 

Artigo publicado no Correio Braziliense

O panorama da atualidade mundial é desolador. Revela-se uma trágica realidade justamente na era científica da história da espécie humana. Os hábitos e costumes tornam-se animalizados, num ciclo de decadência comportamental que se contrapõe aos sonhos civilizatórios. Nova e refinada escravatura ganha a dimensão industrial graças ao consumismo delirante. As iniquidades sociais perpetuam-se dissimuladamente, embora bem visíveis. A tecnologia passou a ser modalidade de linguagem destinada ao domínio imperial. A alma da paz é sufocada pela arma da guerra. Bombardeios fazem parte do cotidiano do Planeta. Suas vítimas morrem ou sobrevivem, a duras penas, nos campos de refugiados, testemunhando a carência do humanismo verdadeiro, sem o qual não se constrói uma sociedade legítima. Ademais, a redução aparentemente irreversível da taxa de natalidade, viabilizada pelos métodos científicos, alcança níveis incapazes de renovar a população e evitar a autoextinção da espécie nos próximos séculos. 

As inovações científicas são incontestáveis. Acrescentam a perspectiva de maior conforto material à vida humana. Geram, no entanto, o ambiente no qual prospera a fé dogmática na tecnologia como novo perfil religioso do século e propiciam distintas versões de relacionamento interativo entre as pessoas, única e tão somente no universo virtual. Como consequência, delineia-se, progressivamente, uma ruptura radical com os valores do passado, construídos em outra lógica. Desconfiguram-se virtudes mentais e intelectuais que permitiram sustentar a capacidade de abstração interpretativa e crítica, que diferenciou a espécie Homo sapiens das outras. Constata-se, de fato, a nítida evidência das causas que explicam a caótica e deprimente situação rumo à qual a humanidade parece caminhar.

O monoteísmo cientificista não se justifica, carece da dimensão que lhe é atribuída como tal. A pesquisa científica representa inquestionável progresso. Assegurou a formulação da metodologia investigativa, baseada no princípio da observação, muito bem concebida por Francis Bacon, no século 18. Foi, porém, divinizada qual fonte de verdade absoluta. Consolidou-se, desde então, novo poder em detrimento da sabedoria que se buscava difundir educadamente ao longo do tempo.

A filosofia perdeu espaço no contexto educacional, invadido e ocupado pela ciência em todas as suas concepções. Há não muito tempo, a investigação científica era identificada como atividade predominantemente de análise. Remexia em diferentes e múltiplas áreas materiais ou substanciais, suscitando conhecimentos específicos cada vez mais profundos, porém limitados no conteúdo. Já a filosofia, que não é ciência nem religião, tem origem nos mais antigos tempos da sociedade. Corresponde à dinâmica intelectual desenvolvida pela espécie na perspectiva extraordinária de agregar conhecimentos isolados, identificar-lhes as afinidades conceituais potencialmente construtivas, valendo-se da análise científica para elaborar a síntese abrangente, geradora de princípios, teorias e doutrinas concebidos em favor da humanidade.

O grande legado de pensadores e filósofos dos velhos tempos acabou excluído dos conteúdos educacionais do presente. São exemplos marcantes a teoria evolucionista, a doutrina dos direitos, a dialética, os princípios cartesianos. A evolução intelectual dos povos está deliberadamente desconstruída. A análise superou a síntese afastando-a do contexto da produção de conhecimentos. Há mais de um século, nenhuma teoria filosófica foi produzida. O desenvolvimento do ato de pensar, principal essência do humanismo, sofre absurdo desestímulo. O abandono desse tão precioso modus operandi mental está na gênese das sucessivas e devastadoras crises socioeconômicas que abalam a estrutura da humanidade em distintos países, inclusive o Brasil. O desaparecimento da liberdade de pensar esvaziou o cultivo do imprescindível respeito, individual e coletivo, aos valores morais e éticos.

A corrupta cultura do “vale tudo” retoma o comando dos novos tempos. A educação estatizada, institucionalizada e virtualizada ganha corpo, mas perde a mente. A ditadura da análise avoluma-se em detrimento da síntese filosófica, que não deixa de perder terreno na sociedade atual. Os direitos humanos, oriundos da livre construção intelectual, desintegram-se a olhos vistos. Para as pessoas, segundo Will Durant: “Mais vale um punhado de poder do que uma mochila cheia de direitos”. Sem filosofia, não haverá educação.


* Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria e presidente do Global PediaricEducation Consortium (GPEC)

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