Se o país não enxergar a necessidade de investir em ciência permanecerá no passado.
*Marcelo Gleiser –
Num momento político extremamente difícil para o Brasil, em que a divisão de opiniões que sempre existiu torna-se mais clara do que nunca, e a sociedade parece rachar ao meio, perdida em ataques e defesas, ofereço alguns momentos de trégua, entregues a uma reflexão que transcende a crise atual.
A situação me lembra um pouco o que ocorria na Grécia antiga, em torno de 404 a.C., quando a Guerra do Peloponeso terminou e Atenas finalmente se rendeu a Esparta. Em meio ao enorme tumulto político, a atenção das pessoas voltou-se para ideias mais abstratas, que existem numa realidade além da volatilidade destrutiva dos homens.
Jovens observam pesquisadora fazer teste em laboratório – Marcelo Justo/Folhapress
Esta foi a época de Platão, que elevou o pensamento para o mundo da abstração matemática, o único onde, segundo ele, a verdade pode ser encontrada.
No nosso caso, o Brasil de 2018, não é nas ideias abstratas que podemos encontrar um respaldo para o que está ocorrendo. O país, que quando eu era menino já era chamado de “o país do futuro”, ainda não encontrou o seu, preso a estruturas históricas que se negam a ceder a vez para o amanhã. O Brasil, a meu ver, enquanto insistir em ser apenas uma economia de extração, baseada na mineração e na agropecuária, não vai sair do buraco existencial em que se encontra há décadas. Há espaço para muito mais.
Basta olhar para os países que estão alavancando o mundo, que estão, essencialmente, reinventando a sociedade moderna —a Coreia, o Japão, a China, os EUA, a Alemanha— para ver que apenas investindo na ciência e na tecnologia as coisas podem mudar. O desafio é como fazer isso, fora, obviamente, eleger um governo que entenda essa questão e invista solidamente no desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
As pessoas —especialmente os mais jovens, estudantes decidindo ainda qual carreira seguir— me perguntam com frequência porque resolvi ser cientista. O que vejo, e tenho certeza que muitos de meus colegas confirmariam isso, é que a vasta maioria das crianças, adolescentes, e jovens adultos não têm a menor ideia do que significa ser cientista, de como seguir a carreira, ou o que fazemos nas nossas diferentes especialidades. Arrisco dizer que, no Brasil, menos de 5% da população pode citar o nome de três cientistas brasileiros vivos. (Ou mesmo um ou dois.)
O primeiro obstáculo é a invisibilidade. Se ninguém conhece um cientista de carne e osso, e a única referência que se tem é em filmes e shows de TV importados, fica mesmo difícil contemplar a possibilidade de uma carreira científica. Diferentemente de médicos, dentistas, professores, policiais, advogados e engenheiros, profissões que são parte das nossas vidas, os cientistas parecem viver numa realidade paralela, invisível ao resto da sociedade.
Quando um jovem imagina um cientista, provavelmente é como um dos personagens da série \”Big Bang Theory\”, todos supernerds, socialmente ineptos e adoráveis; ou o Einstein pondo a língua de fora; ou um professor de química que desenvolve drogas de alta qualidade.
A solução, aqui, é obviamente dar maior visibilidade à ciência. Por exemplo, incentivar cientistas a visitar escolas públicas e privadas, incluindo estudantes de pós-graduação, uma ideia que dei ao senador Cristovam Buarque anos atrás, e que ele ainda luta para transformar em lei. Numa mensagem dele que recebi sobre o assunto, de maio de 2015, pedia que escrevesse ao senador Romário sobre o assunto.
Perguntei nesta semana, e o que o senador me disse foi desalentador: “Criaram todas as dificuldades possíveis, um dia contarei. Agora estão contra já na Câmara de Deputados porque exigem ficar claro que não vai implicar gastos. Estou preparando uma emenda dizendo isto.” Ou seja, gastar na divulgação da ciência é algo de impensável; tudo deve ser feito de graça, e os resultados devem ser um milagre. Enquanto isso, anos se passaram e nada ocorreu, apesar dos esforços do senador e sua equipe.
A ideia é simples: estudantes contariam aos alunos o que fazem em suas pesquisas, como fazem e porque o fazem. Seminários rápidos de treinamento de como falar informalmente em público, incluindo técnicas básicas de pedagogia seria oferecidos por mentores mais experientes. (Obviamente, em caráter voluntário.) Aliás, não há porque não incluir cientistas mais estabelecidos nesta iniciativa. Uma atividade simples de divulgação científica deveria ser condição do ganho de bolsas do governo, como a Nasa e a Fundação Nacional de Ciência fazem nos EUA.
O segundo obstáculo é o estigma de que cientistas são nerds. Muita gente acredita nisso, uma completa bobagem. Existem, sem dúvida, cientistas que são nerds. Mas existem muitos que não são, exatamente como médicos num hospital, ou advogados e engenheiros. Existem cientistas atletas, surfistas, motoqueiros, músicos de rock, enfim, representando todo o espectro da sociedade. Religiosos, ateus, liberais e conservadores. Quando o assunto é pessoas e suas escolhas, generalizações de qualquer tipo são uma forma muito pobre de descrição.
Gostar de matemática, de pensar, de estudar, jamais deveria ser equiparado a uma fraqueza de caráter. Muito pelo contrário, deveria ser celebrado como o que leva a um futuro melhor.
O terceiro obstáculo é a motivação. Por que ser cientista? Essa é a mais difícil. A primeira razão, e essa é uma opinião pessoal, é que a ciência é um contrato com a natureza, expressão da paixão que temos pelos seus mistérios.
Essa visão, sem dúvida romântica para muitos cientistas, é essencial para muitos outros: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão nos permite dedicar uma vida inteira a entender como o mundo funciona e qual o nosso lugar nele. Mesmo que a contribuição de cada cientista seja, na maioria dos casos, pequena, o que importa é fazer parte desse processo de descoberta. Às vezes, conseguimos desvendar algo sobre o mundo pela primeira vez, abrindo uma janela inesperada para a realidade que nos cerca.
Obviamente, existe o lado utilitário da ciência, extremamente importante e transformador. Fazemos ciência para descobrir e inventar o novo, para melhorar a qualidade de vida das pessoas, para criar produtos e tecnologias que movem a economia e que definem, em grande parte, como vivemos nossas vidas. (TV, ar condicionado, celulares, computadores, internet, wifi, carros e aviões econômicos e mais seguros, antibióticos e vacinas, GPS, de onde vem isso tudo?)
Mas dado que o caminho profissional é longo, comparável ao de um médico, com graduação e pós, apenas a paixão pela descoberta pode servir de combustível ao indivíduo.
Num mundo onde o significado do que é verdade é constantemente ameaçado, nenhum antídoto é mais eficaz do que a transparência da metodologia científica.
No meu caso, sou cientista porque não consigo me imaginar seguindo outra profissão. Considero um privilégio poder dedicar minha vida aos mistérios da natureza e a difundir esse conhecimento todo que temos do mundo.
Quando era novo, meu pai queria que fosse engenheiro. Dizia que o Brasil precisava deles. Acabei, contra seu desejo, seguindo minha paixão. Meu pai tinha razão. O Brasil precisa, sim, de engenheiros. E de cientistas inspirados pelo espírito de inovação tecnológica que está transformando o mundo. Se o Brasil não enxergar isso e mudar sua política científica, estará fadado a permanecer ancorado no passado, com a sociedade dividida entre olhar para frente e olhar para trás. Certamente, não é este o país do futuro.
* Darmouth College, USA.
Publicado em 15/04/2018 na Folha de São Paulo.