*Ex-reitor da Universidade de Brasília, José Geraldo de Souza Junior, para a Redação Jornal Estado de Direito –
Pelos Caminhos da Justiça e da Solidariedade. Estudos de Homenagem a Miguel Lanzellotti Baldez. Coordenadores: Flavia Zangerolame, Rubens Casara. Revisor Antonio Claudio Feitosa. Organizadora: Márcia Fernandes. Florianópolis: Empório Modara (EMais), 2016, 586 p.
Enquanto a prática jurídica não se incorpore da experiência da assessoria jurídica popular, de mediação não adjudicatória e de estratégias fundadas em diálogo social e em consideração à agenda propositiva de direitos humanos elaborada em diálogo com os movimentos sociais, ela jamais será emancipatória, nem os seus operadores lograrão exercer o sentido pleno de responsabilidade social que dá significado às transformações em curso buscando qualificar a prática dos operadores do Direito no Brasil.
Na abertura do livro Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, fruto de seminário com o mesmo título organizado pela CNBB, é dito com ênfase, que “Da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, de um lado; e da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e a normatividade concreta aplicada pelos juízes, de outro; têm-se acentuado a necessidade de compreender novas condições sociais como a emergência dos movimentos sociais, de novos conflitos, de novos sujeitos de direitos, com a valorização de um efetivo pluralismo jurídico” (SOUSA JUNIOR et all, orgs. Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1ª. edição, 1996).
Em decorrência, ali foi dito ainda, que “Num contexto de profunda mudança na sociedade brasileira, também os operadores jurídicos vivenciam perplexidades que têm gerado impasses que recaem na atuação desses mesmos operadores, e nos defrontamos com um quadro de perda de referência e até de perda de confiança no papel das instituições e no papel dos instrumentos que foram constituídos no plano de formação da nossa sociedade. No que diz respeito à atuação dos Magistrados e a sua visibilidade no plano social, esta perda de confiança e de referência tem gerado algumas ambigüidades que vão se localizar, especialmente no que diz respeito aos operadores, na convicção sobre a sua formação jurídica de um lado, e na convicção sobre o seu papel social, de outro” (SOUSA JUNIOR, 1996, idem), provocando um mal-estar, cada vez mais agudizado, de perda de rumo desses operadores no percurso da Política e da História, tal como se vê na conjuntura atual, no Brasil.
Quando se procura figurar a advocacia e a sua função social, um nome logo se põe em realce. O nome de Miguel Lanzellotti Baldez.É o que se evidenciou logo quando o grupo que encabeça a edição desses Caminhos da Justiça e da Solidariedade, tomou a iniciativa de convocar estudos em homenagem a esse notável advogado e assessor jurídico popular e quase uma centena de intelectuais, ativistas, operadores de direito imediatamente se mobilizaram, entre os quais 52 estão representados nessa edição do Empório Modara (Emais Editora), juntamente com filhos, netos, genro e nora, eles próprios, para alem dos laços de filiação e parentesco, integrantes de uma estirpe de juristas, ultimamente rara, que vivencia o seu mister seguindo o paraninfado do ilustre e digno homenageado.
Todos, lembra sua filha Maria Ignez Lanzellotti Baldez Kato, expressão forte da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (quem não lembra de Maria Ignez no filme de Maria Augusta Ramos, Justiça), fonte de umareflexão (que) é para nós, imprescindível e fundamental para a continuidade de seu pensamento e de sua luta, que é nossa também. Por isso, este livro, alem de trazer vários artigos de companheiros de lutas que representam vários segmentos sociais, traz a homenagem também de filhos, neto, genro e nora, também legitimados como companheiros, claro, e de formação das mais diversas áreas: arte, cinema, direito, teatro. O pensamento de Baldez, de uma forma ou de outra, é revelado na formação intelectual de cada um dos companheiros que aqui deixa sua homenagem (p. 11).
No Prefácio (p. 13-18), os filhos Clovis de Oliveira Lanzellotti Baldez, Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez e Coryntho Silveira Baldez Neto, traçam a biografia de seu ilustre pai e homenageado, para acentuar um percurso de vida intensa, porque marcada de força revolucionária da qual não se pode descuidar para avançar e resistir, sempre e sempre, aos ataques conservadores às conquistas populares, como mais uma vez, ocorre nos dias atuais, em que o Estado Democrático de Direito no Brasil acaba de sofrer”. Aos 86 anos não é a primeira frente de luta de Baldez e, certamente, não será a última.
Ó que mostram os 52 autores e autoras nos 47 capítulos que constituem a obra: Aline Caldeira Lopes, Ana Claudia Diogo Tavares, Fernanda Maria da Costa Vieira, Mariana Trotta Dallalana Quintans, Antonio Claudio Feitosa, Cecília Maria Bouças Coimbra, Clarisse Inês de Oliveira, Patrícia Garcia dos Santos, Edésio Fernandes, Ednéia de Oliveira Matos Tancredo, João Tancredo, Elza Ibrahim, Flavia Maria Zanderolame, Flora Maranhão, Francine Damasceno Pinheiro, Patrick Mariano Gomes, Heitor Teixeira Lanzellotti Baldez, José de Souza Martins, José Geraldo de Sousa Junior, José Ribamar Bessa Freire, Laura Olivieri Carneiro de Souza, Leonardo Boff, Leonardo Chaves, Letãcio Jansen, Luiz Alberto Boing, Marcela Rodrigues Souza Figueiredo, Márcia Cristina Xavier de Souza, Marcos Aurélio Bezerra de Melo, Maria Clara Baldez Boing, Maria de Fátima Tardin Costa, Maria de Lourdes Lopes, Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca, Maria Ignez Baldez Kato, Maria Lúcia Pontes, Maria Luiza Baldez, Marildo Menegat, Marina Santos, Nancy Lamenza Sholl da Silva, Nilton Silva dos Santos, Ricardo Pereira Lira, Roberta Duboc Pedrinha, Rubens R. R. Casara, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva, Sérgio de Souza Verani, Simone Dalila Nacif Lopes, Taiguara Líbano Soares e Souza, Talmo Rangel Canella Filho, Thamie Kato, Ubiratan da S. R. de Souza (que também ilustra o livro), Vany Leston Pessione, Vera Baldez Boing e Vivian Gama.
Atendi ao chamamento movido pela grande amizade e pelo compartilhamento de décadas, com Baldez, do esforço de capacitação jurídico-política de movimentos sociais em seu esforço para construir cidadania, direitos humanos e dignidade política para o Direito. É alvissareiro identificar atualmente, nas Faculdades de Direito brasileiras, ao menos naquelas em que núcleos críticos se estabeleceram aproveitando as potencialidades emancipatórias das diretrizes curriculares novas, esse movimento de encontro entre as assessorias jurídicas universitárias e as assessorias jurídicas populares, muito em tributo a referencias nutridas no pensamento e na prática inspirada em Miguel Baldez.
Na Universidade de Brasília, cuja experiência me é mais próxima e real, na origem e em sua continuidade jamais sufocada por interrupções cruentas, um projeto socialmente comprometido fecundou marcantemente a epistemologia emancipatória que o distingue (Sousa Junior, José Geraldo de, org., Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória, Brasília, Editora UnB, 2012). Trata-se de uma epistemologia em sentido forte. Para Miracy Barbosa de Sousa Gustin(Uma Universidade para a Inclusão e a Emancipação: Reflexões, in Sousa Junior, José Geraldo de, Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória, cit.): “Problematizar o conhecimento e não apenas aceitá-lo é permitir a realização de uma epistemologia que torne o próprio conhecimento um sujeito histórico que se realiza no campo da consciência de sua capacidade de transformação e de adequação à necessidade de uma ciência para a liberdade e a emancipação do ser. Esse processo deverá construir sujeitos prontos para aprender, conhecer e questionar as formas e os conteúdos do conhecimento acumulado. A curiosidade intelectual e a capacidade de questionar estruturas e funções serão categorias críticas da fragmentação do saber, de uma separação forçada entre prática e teoria”.
Esses requisitos estão presentes no movimento atual organizado por estudantes de graduação e de pós-graduação de diferentes cursos da UnB ao fundarem a Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho (http://bit.ly/2uOi1ra). Como pode ser extraído de texto de conceituação de um de seus membros: “A assessoria jurídica popular era até então relativamente desconhecida na FD-UnB, cuja trajetória é forte na construção de projetos de extensão que atuam na educação popular em direitos humanos, sempre sob a perspectiva do Direito Achado na Rua, mas sem maior experiência no campo da advocacia popular (a maior experiência nesse sentido havia ocorrido no caso da Vila Telebrasília, no início dos anos 1990). A AJUP veio portanto para se somar às iniciativas de extensão popular, com o diferencial de buscar articular 3 eixos de atuação: (i) advocacia popular; (ii) educação popular; e (iii) fortalecimento político dos movimentos populares” (DIEHL, Diego A.. Sobre a AJUP Roberto Lyra Filho, http://bit.ly/2uQ09MH, acesso em 14.08.2015).
Mas eles haurem e são tributários de um pensamento robusto que soube aliar intransigentemente teoria e prática e que nunca perdeu de vista o jorro libertador de um processo social insurgente de emergência do Direito. É preciso reconhecer em Miguel Baldez, na sua longevidade inspiradora, a fidelidade coerente ao princípio ético do agir humano, expresso em palavras de boa interpretação para orientar o agir em sociedade, pensando e transformando o mundo e a realidade. Eu próprio me sinto também tributário dessa fonte preciosa, tendo colaborado durante anos seguidos com a iniciativa de 1991 da UERJ, de lançamento do projeto de educação jurídica desenvolvido sob a forma do Curso de Direito Social do Programa de Cidadania e Direitos Humanos daquela universidade coordenado por Baldez, o Desembargador Sergio Verani e a professora Esther Arantes. Professores, estudantes, militantes de movimentos sociais não só passaram por rigorosa experiência de formação como puderam ter um espaço público configurado num fórum pleno para realizar o processo de tradução e reconhecimento de suas reivindicações sociais, adjudicáveis política e juridicamente ou, pela força de seu protagonismo, autônoma e diretamente constituídos.
Em cerimônia de homenagem a Baldez na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Jadir Brito assessor jurídico de movimentos populares no Rio de Janeiro, citando Marx, ofereceu sensível testemunho referindo-se a Baldez: “de nada valem as idéias sem homens que possam pô-las em prática”. Não há como deixar de reconhecer na extensão desse vaticínio, o acerto biográfico, vestindo perfeitamente o aprumo de nosso valoroso Lanzellotti, que distante da mítica Camelot, não é menos galhardo paladino pela causa da Justiça e de todos os oprimidos e excluídos.
No texto de Diehl (no sítio já indicado), apresentando a Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho, destaca-se uma nota de reconhecimento que liga Baldez a Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, fundada por Roberto Lyra Filho e, em conseqüência, a O Direito Achado na Rua: “Nossa AJUP pode ser considerada uma feliz convergência, começando por seu nome, que congrega a sigla da experiência de Pressburguer e Baldez no RJ (AJUP) com o nome daquele que é talvez a maior referência do pensamento jurídico crítico no Brasil, Roberto Lyra Filho, prata da casa, da Universidade de Brasília (UnB)”.
É de fato, uma feliz convergência. Baldez, realmente, nos ensinou o que é a rua, atribuindo todo o alcance metafórico que a expressão carrega, para designar o espaço público, campo do acontecimento, em que o social gesta o Direito, quando a multidão nesse processo, se transforma em povo ou, como ele anota em belo texto, se faz protagonista, em “ação coletiva de libertação, para explicitar a essencialidade da participação popular na construção democrática das políticas públicas” (BALDEZ Miguel Lanzellotti. A Terra no Campo: a Questão Agrária, in MOLIGNA, Mônica Castagna, SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, TOURINHO Neto, Fernando da Costa, (orgs), in Introdução Crítica ao Direito Agrário, Série O Direito Achado na Rua, vol. 3. Brasília: Editora UnB, 2002: 95-108).
Radica aí a chamada para que a atividade advocatícia se invista de função social, apta a abrir a sua compreensão para orientar o seu exercício de modo a que o munus que exerce, venha a ser “a resultante da Justiça real, pressuposto de sua legitimidade” SOUSA JUNIOR, José Geraldo de: Função Social do Advogado. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). Introdução crítica ao direito. Série O Direito Achado na Rua, vol 1, Brasília: Editora UnB, 4ª edição, 1993:129).
Por isso as considerações feitas neste texto, apelando à necessidade, constatada por Jacques Távora Alfonsin, a partir de eventos recentes que indicam uma virada funcional seguindo esses pressupostos. Com efeito, conforme esse advogado, ícone da denominada advocacia popular, ao comentar o fato de que algumas provas para ingresso em carreiras jurídicas do Estado estão colocando, como conhecimento prévio necessário para isso, matérias previstas nos editais dos concursos abertos para essas funções públicas, extremamente oportunas e convenientes para a importância das prestações de serviço inerentes as ditas carreiras, entre elas “O Direito Achado na Rua”, tal opção:
Constitui um sinal muito significativo de uma parte do Poder Público estar interessada numa prestação de serviços moderna, próxima do povo, ético-politicamente fiel a valores, até, metajurídicos, a um outro paradigma de visão da realidade e interpretação das leis para a sua mais justa aplicação. Não é pouco exigir das/os candidatas/os interessadas/os em exercer funções públicas como as de promotor/a de justiça, previstas nesses editais, conhecerem, além do direito achado na rua, direito civil e os pobres, direito como instrumento de opressão social, direitos relativos à mulher, inclusive na ordem internacional, o dever de o Poder Público franquear o acesso aos arquivos secretos da ditadura militar, etc…
Fora de um normativismo comprovadamente vencido e até alienado, muito vinculado ainda às fontes europeias do direito, esse novo paradigma em vez de descer, ele sobe em relação ao povo, ou seja, parte do sujeito que tem direito de cobrar o mais e o melhor dos serviços públicos e não a mesmice – na letra, historicamente inadequada e na aplicação, institucionalmente ineficiente – do nosso ordenamento jurídico, pois é justamente essa a razão de o edital exigir conhecimento do “direito como instrumento de opressão social.”
As/Os futuras/os promotoras/es de Minas Gerais e as/os analistas de planejamento e orçamento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, pelo que se deduz dos editais convocatórios desses concursos, não serão meros repetidores daquele tipo de afirmação de poder da autoridade pública que desconhece não ser um fim em si, sabe que a lei, igualmente, só merece respeito quando se traduz em respeito, também, à dignidade humana, aos direitos humanos fundamentais, cujas garantias não permaneçam apenas previstas em qualquer ordenamento, mas efetivadas no dia a dia da população.
A simples lembrança do Direito Achado na Rua, assim, deve ser saudada como saber indispensável ao ingresso nessas carreiras jurídicas, por força de uma conquista popular daqueles juristas teórica e praticamente identificados com os direitos das/os pobres e excluídas, como José Geraldo de Sousa Junior e Boaventura de Sousa Santos, entre outros/as.” (ALFONSIN, Jacques Távora. O Direito Achado na Rua é indispensável às carreiras jurídicas).
http://bit.ly/2LSqlgo, acesso em 14.08.2015.
Ao fim e ao cabo, o que nos propõe Baldez é enfibratura na luta emancipatória, com garra pois. Mas também com disposição sensível, conforme poeticamente nos lembram, com cautela Cynthia Baldez (aos poucos/ roda-se vida/ e a sociedade/ de cegueira evidente/ transformam/ um ser e a sua/ identidade/ numa/ simples e/ pequena/ pepitinha [-de-ouro-de-tolo]); mas com esperança em caminhos de solidariedade e justiça, Bruna Baldez: (Resistem os gritos/ De amor/ (Não escuta?)/ Do mar, fez-se arte./ Da dor, faz-se luta.).