Por Cristovam Buarque –
A cada ano, desde que na década de 1960 o arcebispo D. Helder Câmara lançou a Campanha da Fraternidade, a Igreja Católica apresenta para debate e mobilização da sociedade um tema que exige fraternidade para solucioná-lo. A campanha torna mais visíveis problemas tais como pobreza, desigualdade, violência, depredação ambiental. Esses problemas passam a ser encarados não apenas pelo lado social, econômico e político, mas também passam a ser vistos sob a ótica comportamental da necessária fraternidade. Este ano, a campanha trouxe o oportuno tema da relação entre fraternidade e políticas públicas. Poderia ser Fraternidade e Política, para chamar a atenção de que não deveria haver prática política sem sentimento de fraternidade. A opção de uma pessoa pela atividade política só deveria ser justificada por um espírito missionário de fraternidade com o povo, especialmente os pobres, excluídos, perseguidos, os que sofrem preconceitos, aqueles que não têm acesso aos bens e serviços necessários a uma vida digna.
O político deveria sofrer junto com o sofrimento do povo e concentrar seus esforços para eliminar as necessidades da população. Lamentavelmente, na maioria dos casos, o que se vê é o contrário: sem espírito de fraternidade, as pessoas optam pela atividade política buscando o aproveitamento, a locupletação e o enriquecimento pessoal, sob a forma de mordomias, privilégios e até o roubo de dinheiro público. Isso é visível naqueles que buscam ser eleitos para cargos políticos, sem compromisso com a fraternidade; também entre eleitores que votam em busca de alguma vantagem pessoal e não o bem comum. Esse comportamento antifraterno é a motivação da política que, ao longo de anos, tem levado o Brasil a ser um campeão em concentração da renda, em desigualdade, em mortes violentas, inclusive feminicídio e infanticídio; e também à corrupção, esse antônimo conceitual de fraternidade.
Felizmente, nos últimos anos, o povo brasileiro vem despertando contra a corrupção no comportamento dos políticos e também contra a corrupção dos privilégios. Mas ainda parece distante o despertar para a corrupção nas prioridades que, distante do espírito fraterno, faz com que os recursos públicos sejam utilizados para a atuação sem qualquer compromisso fraternal, nem para a corrupção da irresponsabilidade e do desperdício. A população se indigna ao tomar conhecimento de enriquecimento de políticos e empresários graças ao superfaturamento de obras. Mas ainda não percebe que a opção por essas obras, como no caso do Estádio Nacional Mané Garrincha, em que se gastou cerca de R$ 2 bilhões, enquanto ao redor dele há mais de 100 mil pessoas sem tratamento de esgoto. Ainda que não tivesse havido roubo, essa construção é corrupção nas prioridades, provocada por falta de fraternidade no orçamento para os gastos públicos.
A campanha da CNBB deve nos despertar para a necessidade de um orçamento fraterno. A falta de fraternidade leva à opção de financiar prédios de luxo com recursos públicos desviados de obras prioritárias. Por falta de fraternidade orçamentária, centenas de prédios de tribunais, de casas legislativas e de órgãos do poder executivo são construídos com um luxo corrupto, mesmo que sem roubo direto. Porque o dinheiro poderia ser utilizado para financiar políticas públicas que atenderiam com fraternidade às necessidades da população pobre.
A campanha da CNBB deste ano poderá despertar a população para a corrupção nas prioridades e também para a necessidade de que certas políticas públicas em andamento devem ser mantidas. Ao mesmo tempo pode nos despertar para novas políticas públicas fraternas, como um programa para a erradicação do analfabetismo, a garantia de tratamento sanitário em todas as casas, a oferta de educação de base com a mesma qualidade para todas crianças, a proteção de nossas florestas e rios, o tratamento respeitoso para com nossos índios, o fim dos preconceitos, a garantia de aposentadoria para os velhos, sem a corrupção da inflação.
Com sua campanha deste ano, a CNBB coloca a dimensão da fraternidade no nosso imaginário, mostrando que a política precisa de comportamento fraterno, com os olhos nas necessidades dos que precisam.
*professor emérito da Universidade de Brasília