Por Adriana Abujamra | Para o Valor, de Ribeirão Preto –
O mais velho dos filhos de Sérgio Mascarenhas sofreu com a esquizofrenia a vida inteira. Entrou na universidade para estudar bioquímica, mas teve dificuldades para concluir o curso. \”Ele falava sozinho, andava para lá e para cá\”, diz Mascarenhas, que estudou física e química e fez carreira na carreira na academia como cientista. \”Eu pensava: o que vai ser dele depois que eu morrer? De onde vai tirar o seu sustento?\”
Para aplacar a angústia que sentia com a situação, Mascarenhas criou o Serviço de Assessoria e Proteção Radiológica (Sapra), dedicado a proteger profissionais da saúde e indivíduos expostos a radiação. O primogênito acabou morrendo antes do pai. Hoje a empresa é administrada por seus outros filhos, Paulo e Yvone, e se tornou a maior do ramo no país
Mas tudo acaba em lição para o cientista, hoje com 91 anos. \”Veja que coisa mais linda\”, diz Mascarenhas. \”A vida é uma série de encontros e desencontros, e até doenças malditas se tornam benditas.\” E foi assim, lidando com os trancos da vida, que o cientista se tornou Ph.D. em transformar cargas negativas em positivas.
Outro gatilho foi o diagnóstico de hidrocefalia que Mascarenhas recebeu aos 77 anos e o fez andar com duas coisas na cabeça: uma válvula – para evitar acúmulo de água e inchaço que podia comprometer suas funções cerebrais – e uma ideia fixa – descobrir um método menos arcaico para tratar a doença. \”Eu estava inconformado por terem furado a minha cabeça em pleno século XXI. Coloca a mão aqui, está vendo? Tem um buraco, um calombo\”, diz.
O cientista, então, sentou na cozinha de sua casa com um crânio emprestado da universidade e inflou em seu interior uma bexiga. Colocou um pequeno sensor na superfície, do tipo usado por engenheiros para detectar deformações de viga, e, com um aparelho de medir pressão arterial, descobriu que o crânio é expansível e que essa deformação pode ser detectada por fora.
Esse achado quebrou um paradigma. Durante dois séculos as escolas médicas do mundo todo ensinaram a doutrina de Monro-Kellie, segundo a qual o crânio dos adultos é rígido e não sofre expansão. Por isso, acreditava-se ser impossível medir sua pressão do lado de fora. Mas a experiência de Mascarenhas mostrou o contrário. \”Minha vontade era correr e contar para todo mundo.\” Viajou para a Alemanha e apresentou suas descobertas em um congresso de neurociência \”Eu queria chocar. Comecei dizendo que o princípio de Monro-Kellie está errado. A plateia fez \’óóóóó!\”, relembra ele, rindo.
Em 2014, após pesquisas e testes realizados com equipe de médicos e pesquisadores de diferentes universidades e apoio de programas da Fundação Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), surgiu a brain4care, empresa que comercializa um dispositivo que mede a pressão intracraniana (PIC) de forma não invasiva. Em 2017, um grupo de investidores, encabeçado pelo empresário Horácio Lafer Piva, presidente do conselho da Klabin, fez um aporte na empresa de US$ 5 milhões. O funcionamento da engenhoca parece simples. Um sensor é posicionado externamente, na cabeça do paciente, e gera dados que podem ser visualizados em tempo real, na tela de qualquer computador ou dispositivo móvel conectado à internet. O método já tem patente nos EUA e na Europa. Foi adotado pelo Sírio-Libanês, está em fase de implementação nos hospitais da Rede D\’Or, no Rio de Janeiro, e a expectativa é entrar em mais dez hospitais nos próximos meses.
Mas há limites até para o rei da alquimia. O cientista preserva a ebulição intelectual, mas perdeu um pouco da audição. \”É uma das chatices da idade. Não escutar o próximo é angustiante\”, diz, para logo soltar um gracejo. \”Esse camarada, Deus, não é bom profissional. É péssimo desenhista de gente.\”
Professor aposentado da Universidade de São Paulo e professor visitante de Harvard, Princeton e outros centros de excelência, Mascarenhas passou temporadas fora do país, mas sempre voltou. \”Pensei: se eu morrer no Brasil, quem sabe deixo um legado e pago a dívida com a educação gratuita que recebi. E tinha também um sentimento de culpa. Você já foi a uma favela? Precisa ter pele grossa para passar por isso.\”
O cientista viveu boa parte da vida no interior de São Paulo, primeiro em São Carlos, onde foi um dos responsáveis pela criação do curso de engenharia de materiais da universidade federal local (UFSCar), em 1970, pioneiro na América Latina e agora em Ribeirão Preto, no mesmo condomínio onde fica o restaurante da Sociedade Hípica, local deste \”À Mesa com o Valor\”. Mascarenhas chega acompanhado de Telma, sua mulher; Paulo, filho do primeiro casamento e diretor do Serviço de Assessoria e Proteção Radiológica (Sapra); Plínio Targa, CEO e sócio da brain4care; e a assessora Lídia de Santana.
De olhos miúdos e pernas longas, o cientista salta de um assunto a outro com desenvoltura. \”Você sabia que eu era um malandro? Fui reprovado três vezes, fugia do colégio interno para os \’dancings\’ – eu dançava muito bem. Amigos daquela época dizem \’Aquele camarada virou professor? Não é possível\’.\”
Abastados, os avós paternos administravam um hotel em Minas Gerais e garantiam uma vida cômoda para toda a família. Mas sua mãe, um dia, já saturada com as constantes brigas com a sogra, decidiu que a família iria para o Rio. Instalaram-se em uma pensão frequentada por Ary Barroso (1903-1964), responsável por despertar o gosto musical no garoto. Como o pai de Mascarenhas era cego, coube à mãe garantir o sustento da casa.
\”Tive uma vida dupla, de oscilações. Nas férias a gente ia para a casa de meus avós, eu era rico. Voltava para o Rio, era pobre, de uma família fraturada.\” Quando Mascarenhas tinha 12 anos, seus pais se separaram. \”Aquilo quebrou minha estabilidade.\” Caiu na farra até ser resgatado por uma turma estudiosa, que discutia física, matemática, filosofia, artes e literatura. Animado, levanta o queixo, limpa a garganta e recita uma poesia que compôs na época:
\”Tenho um medo enorme do futuro, dos ignotus dias que virão/(…) pela turba aprisionado em ferro e muro, afogado no mar da multidão/ mas tendo a separar-me dos humanos (…) a coroa que eu próprio me forjei/ ao da morte enfrentar a hora fria, o consolo me reste na agonia, a majestade dos sonhos que sonhei\”.
Seu desejo inicial era ser advogado, ou talvez poeta, mas mudou de ideia ao se deparar com a ciência. Para ilustrar o que diz, cita o caso do físico Paul Dirac (1902-1984). Ao descobrir que o vácuo não é vazio, mas cheio de energia negativa e de partículas, a comunidade científica disse que Dirac provavelmente estava doido. O britânico não se abalou. Respondeu que a equação era tão linda, que era impossível estar errada.
\”A beleza da matemática, com suas equações simétricas, da física, da pintura, da música, é muito importante, dá um sentido de alegria. Observe a orquestra: o pulmão fornece oxigênio ao coração, que fornece sangue oxigenado ao cérebro. É feito um trio do Villa-Lobos, precisa funcionar muito bem e em harmonia. É um negócio tremendo.\”
Mascarenhas, que se interessa por temas que vão da física à psicanálise, da química às artes plásticas, criou um curso de música clássica para os estudantes de engenharia da UFSCar. Convidou uma cravista, que, além de dar aulas, servia de concertista nos eventos da universidade. No início, \”esse pessoal grosseiro da ciência\” questionava a iniciativa, mas para Mascarenhas a relação entre as áreas é inconteste. Quanto maior a interação entre elas, diz, mais rápido a informação será processada.
\”Conhecimento é a matéria com a qual interagimos com a realidade. Mas cognição é o empoderamento do conhecimento e seu processamento pelos 80 bilhões de neurônios do nosso cérebro\”, diz. \”O mais importante é como articular esse conhecimento. O camarada pode ter grande conhecimento, que não é o mesmo que dizer que tem a sabedoria – dada pela cognição. O que realmente importa é o conectoma, ligações entre os neurônios. A beleza da ciência está na sua transdisciplinaridade, e ela é essencial para a inovação.\”
O futuro da humanidade, segundo ele, depende da união virtuosa da ciência e da tecnologia com as humanidades, o que o químico e romancista britânico C.J.Snow (1905-1980) denominou de Terceira Cultura. Por isso, Mascarenhas considera um erro o \”desprezo\” do governo pelas ciências humanas e lamenta não ter votado nas últimas eleições. \”O governo é um desastre. Ignora que a filosofia e as humanidades são relevantes, ignora a importância da ciência, ignora que a grande força das ciências está nas universidades públicas. A ignorância é mortal.\”
Ao ser lembrado pela família de que a tilápia com arroz e molho vinagrete está esfriando no prato, Mascarenhas levanta os braços e espalma as mãos nas mãos da repórter. \”Bate aqui, mulher!\” O bacana, diz, não é comer, \”mas o conectoma\”. Telma vai até ele para se certificar de que o molho vinagrete está sobre o arroz. Ele aproveita a deixa para enaltecê-la. Diz que sua companheira, que é assistente social, foi muito corajosa ao adotar duas crianças quando ainda vivia sozinha. Elogia também sua primeira mulher, Yvonne, física-química como ele e vencedora de prêmios na área.
\”Sou feminista, quero levantar essa bandeira. Mulher sempre foi posta para baixo. Pouco a pouco, elas estão assumindo seu potencial, não apenas como geradoras de vida, mas como geradoras de conhecimento. A ciência não pode prescindir disso.\”
Mascarenhas criou recentemente o Prêmio Marie Curie para incentivar jovens mulheres cientistas. O nome do prêmio é homenagem à cientista polonesa que descobriu os elementos químicos rádio e polônio. Proibida de estudar em seu país, Marie (1867-1934) fugiu para a França, ganhou duas vezes o Nobel e foi a primeira mulher a dar aulas na Sorbonne. Outro programa criado por ele, mais antigo, é o Retorno de Cérebros. Mascarenhas se empenhou em resgatar para as universidades cientistas brasileiros que viviam fora. Para convencê-los, conseguia verbas para pesquisa e passagem para toda a família. \”Temos que ter força política pela ciência, pela criatividade, assim como temos pelo futebol, pelo Carnaval. Por que não podemos ter o Pelé da ciência? É uma angústia que tenho.\”
Mascarenhas ajeita um pouco de comida no garfo, mas o abandona antes de levá-lo à boca. Diz que as questões da ciência no Brasil são antigas e remetem aos 500 anos de colonização, que nos tornou o país das commodities, sem agregar inovação e tecnologia aos seus produtos.
\”Nossa história nos torna um país de exploração da mais-valia, exportador de matéria-prima, um país racista\”, diz. \”A grande reformulação só será dada pelo caminho da ciência, só assim para libertar o Brasil dessa herança maldita. Não adianta fazer uma ciência colonizada, não existe ciência caipira. Ou você faz ciência de nível global, ou vai ter que inventar a roda.\”
Pratos estão quase vazios, mas Mascarenhas mal tocou no seu. Quando a reportagem sugere que coma, ele brinca: \” É uma maneira de fazer eu parar de falar? Você ligou minha chave, agora o motor está funcionando. O carro precisa de gasolina, mas precisa mais ainda é poder viajar\”. Ele, então, pega os talheres e passa a palavra para Plínio Targa, seu ex-aluno e hoje sócio e CEO da brain4care. \”O Plínio viu o cenário mais amplo de empreendedorismo, entendeu a tecnologia e o mercado. Sem ele eu estaria na torre de marfim da universidade. Tem que sair dessa ilha para devolver para a sociedade.\”
Sempre referindo-se a Mascarenhas como \”professor\”, Targa conta que em 2005 o cientista descobriu o novo método de medir pressão intracraniana (PIC) e publicou os primeiros artigos; em 2014 abriu a empresa e, dois anos depois, ele e o empresário Carlos Bremer se juntaram ao projeto.
No ano seguinte, a startup foi uma das 7 entre 500 empresas do mundo a serem escolhidas para aceleração na Singularity University, centro de tecnologias exponenciais do Vale do Silício, na Califórnia. A comunidade de cientistas que analisou o processo no Singularity acredita que a descoberta de Mascarenhas tem potencial para ganhar escala e causar impacto em 1 bilhão de pessoas nos próximos dez anos, definindo o sexto sinal vital da saúde. Hoje, os cinco sinais vitais avaliados pelos médicos são temperatura, pressão arterial, frequência cardíaca, frequência respiratória e dor.
Com o avanço das pesquisas, descobriram que a PIC está relacionada não apenas a distúrbios neurológicos, como trauma craniano, hidrocefalia e tumor cerebral, mas também a doenças cardiológicas, eclâmpsia (quadro de hipertensão em mulheres grávidas) e patologias relacionadas ao fígado.
Com o \”motor\” turbinado, Mascarenhas larga os talheres, assume a direção da conversa e nos leva à Hiroshima, no Japão. Na década de 70, quando lecionava no Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP), o cientista descobriu que irradiando ossos humanos com raios X, eles se tornavam levemente magnéticos – propriedade conhecida como paramagnetismo. O trabalho rendeu um convite para lecionar na Harvard, nos EUA. Antes, porém, ele foi ao Japão para tentar obter amostras de ossos de vítimas das bombas atômicas e, assim, testar seu método. Em Hiroshima, ele foi ao Atomic Bomb Research Center, centro de pesquisas criado pelos americanos. \”Veja que coisa dantesca. Além dos americanos jogarem a bomba em Hiroshima e Nagasaki, eles usaram as próprias vítimas para fazer pesquisa.\”
Mascarenhas diz que foi tratado com desdém pelo centro. Só mudaram o tom ao saberem que o brasileiro havia sido convidado pela Harvard para expor seu trabalho. De posse dos ossos das vítimas, mediu a dosagem de radiação lá mesmo. As amostras foram trazidas por Mascarenhas ao Brasil, onde ele as guarda até hoje.
Desde então, os equipamentos evoluíram e o cientista fez uma nova medição, mais atualizada e confiável que a preliminar. Técnicas como essa, diz, podem ser úteis. \”Imagine que um terrorista detone uma bomba comum em um grande centro e grude no explosivo um pouco de material radioativo. Faria um enorme estrago. O método pode ajudar a identificar quem foi exposto à poeira radioativa e necessita tratamento.\”
Os pratos são retirados. O professor anima-se com os doces. Pede para trazerem duas caixas de pequenos quadrados de sorvete cobertos com chocolate, do tipo que se come com a mão. Já com o doce entre os dedos, ele conta que no ano passado o jornal \”The Washington Post\”, ao saber do experimento, veio ao Brasil entrevistá-lo. \”O \’Washington Post\’!\”, repete, animado. \”Na medida em que seus experimentos vão dando certo e são reconhecidos internacionalmente, é natural adquirir autoconfiança, mas dá também vaidade, que pode ou não atrapalhar. Veja Beethoven, Mozart: tinham talento, mas um ego bastante agressivo também.\”
E como Mascarenhas lida com a vaidade? \”Lido mal. Sei que sou vaidoso. Corto um pedúnculo aqui, nascem mais dois\”, diz. Para controlar as penas da cauda de pavão, cerca-se de alunos mais inteligentes que ele. \”Ter alunos com maior capacidade cognitiva na vizinhança dá um prazer enorme e dá também aquele contentamento de descobrir que foi você que descobriu.\”
No ano passado o professor publicou o liro \”Novos Olhares de Janus\” (ed. Funpec). Na mitologia romana, Janus é um deus bifronte, que mantém uma face para o presente e outra para o futuro. Enquanto escreve dedicatórias nos exemplares – sem precisar colocar os óculos -, avisa que ainda quer discorrer sobre seus novos projetos, entre eles desenvolver um aplicativo para ajudar no tratamento de Alzheimer, investigar a cura do câncer ou ainda entender o mecanismo da dor em termos numéricos. Sugere também que a reportagem dê um pulo na universidade para conhecer e fotografar a coleção de ossos que trouxe de Hiroshima.
Mas, a esta altura, a dona do restaurante já está aflita para fechar o salão. Mascarenhas pega o último doce na caixa. \”Meu tempo de validade está acabando. Tenho pressa, mas o tempo das pessoas é outro\”, diz. \”Tenho 91 anos, não dá para deixar nada para depois.\”
Que lindo! Um exemplo brilhante de conhecimento e humanismo, O Brasil precisa de homens e mulheres assim!