Por Cristovam Buarque, para o Correio Braziliense –
Periodicamente, as universidades estatais brasileiras têm sofrido fortes contingenciamentos de recursos financeiros, devido a cortes de verbas nos orçamentos federais. Quase sempre os governos depois suspendem o contingenciamento, mas o desastre está cometido e irrecuperável. Pior até do que pouco recurso é a intermitência que impõe o funcionamento irregular da universidade. São cortes nas veias do país: porque modernamente o principal fator de produção econômico é o conhecimento. Tirar apoio das universidades provoca sangria no conhecimento e asfixia o país.
Diante da previsível crise fiscal que o Brasil atravessa é preciso reduzir gastos do setor público, mas sem deixar as universidades definharem, porque isso significa definhar o futuro. Quando luta por mais recursos, a universidade luta pelo futuro do país, essa é sua obrigação, e não uma motivação corporativa. Mas essa luta precisa entender a realidade das restrições fiscais impostas pela irresponsabilidade, pelos desperdícios e pela corrupção no comportamento dos políticos e nas prioridades da política que caracterizam nossa história, inclusive nos últimos governos. Se não entender isso, a universidade não entenderá a realidade, e não terá justificativa para receber mais recursos por ser o centro da inteligência nacional.
Por isso, uma das principais tarefas da universidade é usar o seu potencial intelectual e político para indicar onde os orçamentos públicos do Brasil devem reduzir gastos, mordomias, privilégios para dispor do dinheiro necessário para financiar nossa infraestrutura física e intelectual. A universidade precisa lutar contra a corrupção e os desperdícios, fontes dos deficits que agora impõem contingenciamento: apenas os gastos com o Estádio Mané Garrincha, símbolo do desperdício e da corrupção, que a comunidade da UnB assistiu ser construído sem criticar, permitiria cobrir o contingenciamento imposto em 2019 em todas as universidades do Brasil.
Mesmo entendendo isso e superando a falta de recursos financeiros, a universidade, centro máximo de geração do conhecimento, deve entender que seu maior e pior contingenciamento é estrutural: o corte de cérebros que a educação de base lhe impõe. Desde a fundação de nossa primeira universidade, em 1922, entre 20 milhões e 30 milhões de brasileiros morreram no passado ou vivem hoje em estado de analfabetismo. Isso representa um gravíssimo contingenciamento que os professores, alunos e servidores da universidade ignoram. Se apenas metade deles tivesse terminado um bom ensino médio, e desses a metade entrado na universidade, seriam 5 milhões a 8 milhões de cérebros que enriqueceriam a universidade. Perdemos cerca de 20 milhões de cérebros se apenas 25% de nossos atuais 70 milhões de analfabetos funcionais tivessem entrado na universidade. A baixa qualidade da educação de base representa o mais grave contingenciamento de recursos que sofre a universidade.
Apesar disso, nas mobilizações para impedir o suicídio nacional pelo contingenciamento de verbas, não se vê cartazes pedindo um programa pela erradicação no analfabetismo ou pela federalização da educação de base, nem o aumento no valor do Piso Nacional do Salário do Professor da educação de base. A universidade, apesar de ser a base da formação do saber nacional, não usa seu saber para entender e denunciar que o contingenciamento estrutural é ainda mais grave do que o contingenciamento fiscal que impede seu avanço.
Deveria entender outros contingenciamentos que também amarram e asfixiam as universidades, tais como o corporativismo, a convivência com governos que praticam corrupção, desperdícios, prioridades equivocadas, preferência por narrativas falsas levando ao isolamento em relação à realidade, submissão a siglas, no lugar de participação no debate de ideias.
Depois de meses sob a asfixia, o governo anuncia que graças à recuperação de receitas vai suspender o contingenciamento de verbas, sem pedir desculpas pelos estragos irrecuperáveis das interrupções sofridas nesse período. Com esses recursos as universidades se acomodarão, porque reivindicam apenas o fim do contingenciamento fiscal, não percebem a gravidade dos contingenciamentos estruturais que seguem impedindo o desempenho de toda sua potência.