Por Braulio Dias, professor de Ecologia na UnB, e Marina Grossi, presidente do Centro Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), para o Valor Econômico em 22/05/2020
Qual a relação entre a pandemia do novo coronavírus, a covid-19, com a crise da perda da biodiversidade? Tudo!
A covid-19 como várias outras epidemias que têm afetado a humanidade ao longo de sua história é resultante da transposição de uma doença animal, uma zoonose, para o homem, a partir de uma mutação genética e um contato íntimo entre animais hospedeiros ou vetores de alguma zoonose e humanos. A domesticação de animais nos últimos 10 mil anos propiciou a passagem de várias zoonoses para a população humana seguida da introdução de animais entre os continentes com o primeiro grande surto de globalização há cerca de 500 anos.
Finalmente chegamos ao período recente com a grande explosão demográfica humana e aumento vertiginoso do consumo e da extração dos recursos naturais e conversão das florestas, campos e mais recentemente savanas, para sistemas intensivos de produção de alimentos, comodities, fibras e energia. A consequência destes processos tem sido a degradação crescente da natureza, com resultante proliferação de animais vetores de doenças silvestres (zoonoses).
Um dos processos mais preocupantes é a caça e comércio ilegal de vida silvestre para venda de carne silvestre sem a mínima condição sanitária. A origem do surto da covid-19, assim como da SARS em 2003, é atribuída por especialistas ao consumo de animais silvestres em mercados públicos na China, prática infelizmente ainda comum em vários outros países, inclusive no Brasil, mais especialmente na Amazônia e na Caatinga. O governo chinês baniu recentemente este comércio insalubre em todo o país como consequência da pandemia da covid-19.
Obviamente, este comércio ilegal de vida silvestre é hoje um dos principais fatores que promovem a perda de biodiversidade no mundo. Outras causas da perda da biodiversidade são o desmatamento e conversão de ecossistemas, a poluição, a extração insustentável de recursos biológicos (madeira, pescado etc.), a dispersão de espécies exóticas invasoras (inclusive patógenos e seus vetores) e as mudanças climáticas.
Apenas nos últimos quarenta anos houve uma redução em média de 60% das populações de animais vertebrados monitorados no mundo, um colapso de muitas populações de animais polinizadores e uma perda de mais 50% dos recifes de coral no mundo.
Estamos nos aproximando perigosamente de um ponto de ruptura global (tipping point em inglês) do limite planetário de sustentabilidade (planetary boundary em inglês) e possivelmente estejamos presenciando o início do Sexto Evento Global de Extinção em Massa das Espécies (o Quinto Evento aconteceu há 66 milhões de anos atrás, que levou à extinção grupos inteiros de espécies, incluindo os dinossauros).
As consequências desta perda de biodiversidade vão além do aumento do risco de novas pandemias, incluindo o risco de quebra de safras de alimentos devido a surtos de pragas e doenças das plantas, a redução de nossa capacidade de promover adaptação às mudanças climáticas, inclusive na agricultura por redução na disponibilidade de recursos genéticos, a perda de serviços ecossistêmicos associados à biodiversidade, a redução na disponibilidade de recursos hídricos associado à perda de florestas e a redução de oportunidades de desenvolvimento da bioeconomia.
Para evitar estes riscos e viabilizar as oportunidades econômicas e sociais é preciso deter e reverter o atual processo de perda de biodiversidade em escala global.
Duas grandes oportunidades se apresentam este ano de promover uma nova agenda global de biodiversidade a ser adotada na CoP-15 da CDB a realizar-se em Kunming, Yunnan, China, em outubro, e a adoção de compromissos para a implementação do Acordo de Paris na CoP-26 da UNFCCC prevista para Glasgow, Escócia, Reino Unido, em dezembro. O Brasil como um ator chave na agenda ambiental global, como detentor do maior estoque de biodiversidade e da maior floresta tropical do mundo, com uma economia fortemente dependente da biodiversidade, como um dos maiores produtores de alimento no mundo e com grande potencial na bioeconomia, tem que exercer um papel-chave nestas negociações.
O que essa pandemia está nos mostrando é o que cientistas vem gritando ao mundo há anos: se não ajudarmos a proteger a biodiversidade e soubermos conviver e aproveitar de maneira racional, lógica, sustentável dos benefícios que ela oferece à sociedade e ao planeta, com propósitos claros e impacto social bastante definido, certamente teremos ameaças futuras ainda piores. A questão é que um mundo em constantes mudanças, sem calcular os efeitos delas, também é o lugar ideal para novas doenças e pandemias. Mas não dá para esperar para conhecer os impactos dessa crise atual. A hora de agir é agora.
É hora, portanto, de a sociedade brasileira, sua comunidade acadêmica e seu setor econômico mobilizarem seus conhecimentos e experiências para apoiar as negociações internacionais em busca de novos compromissos e meios de implementação de uma nova Agenda Global de Biodiversidade e do Acordo de Paris para os próximos 30 anos, em sintonia com a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e dentro da revisão das diretrizes do CEBDS para 2050, que está acontecendo este ano. Esta convocação é feita também em nome de Israel Klabin, presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), que apoia esta iniciativa.
O Brasil é um dos líderes da nova arquitetura global de sustentabilidade, deve assumir portanto seu papel defendendo nossos interesses nacionais e os interesses da humanidade.
O que essa pandemia está agora nos mostrando é que se não ajudarmos a proteger a biodiversidade e se não soubermos aproveitar, de maneira racional, sustentável e lógica, os benefícios que ela oferece, certamente teremos ameaças futuras ainda piores.