SUS: Além do Sub financiamento e da (má) Gestão
“O SUS não é um parlamento de Saúde. Não é sistema de crenças. É um órgão público prestador de serviços de saúde”. (Observatório de Saúde do DF /2012)
Neste segundo texto buscamos a explicação das causas – internas e externas – que levaram o sistema público de saúde brasileiro a uma situação inegavelmente insatisfatória nestas primeiras décadas do século 21. E, se possível, abrir o debate sobre a indicação de caminhos alternativos, no sentido de uma maior eficiência operacional do sistema.
Partimos de uma constatação: há um entendimento, implícito e explícito, talvez um consenso entre as mais diversas autoridades do setor Saúde de que as duas grandes causas da atual situação do SUS seriam o sub financiamento e as dificuldades de gestão. Embora representem dois graves problemas na operacionalização do sistema, explicariam boa parte das dificuldades atuais, mas não respondem por todas as causas do entrave a que chegou. E comprometem a sua eficiência, enquanto sistema prestador de serviços em Saúde Pública.
Assumindo o sub financiamento como a mais importante causa externa ao sistema, e sendo o mesmo auto explicável, caberia uma análise das possíveis causas internas, entre as quais a gestão surge consensualmente como uma delas. Neste caso torna-se essencial definir claramente os termos empregados, para que não se tornem um fator que venha a confundir a análise.
Pela definição dicionarizada, Gestão significa: ação de administrar, gerir, dirigir, de acordo com o dicionário Houaiss. O que estaria, então, ocorrendo com a gestão do sistema? Quais os entraves que levam a gestão a ser relacionada, atualmente, como um dos maiores problemas do SUS? Neste caso, tais dificuldades poderiam estar localizadas no núcleo gestor do sistema ou na periferia deste, isto é, na execução das ações assistenciais planejadas.
Caberia consequentemente perguntas: como se organizam os comandos centrais e periféricos do SUS? Qual a lógica das estruturas organizacional e operacional do sistema?
Concebidas e postas em prática desde o início de década de 1990, as estruturas organizacionais do SUS, em todos os níveis, evidenciam um objetivo maior, talvez prioritário: fazer funcionar um sistema descentralizado, garantindo inteira liberdade aos gestores locais/municipais. Os quais, deveriam orientar a sua administração, sempre em obediência aos princípios e diretrizes contidos na Lei 8080: universalidade; integralidade; equidade e descentralização. Levado às últimas consequências, esta forma de organização de serviços públicos de saúde não se mostrou eficaz, entretanto. Valendo lembrar que nos seus primórdios o SUS se chamou SUDS: sistema unificado e descentralizado de saúde.
Os controles previstos para dar organicidade e funcionalidade ao sistema vêm se revelando frágeis e disfuncionais ao longo dos últimos anos. Cada uma das macro regiões, cada Estado, cada Município interpreta a seu modo o que é e o que deveria ser o SUS. Como se houvesse, de repente, sido criados milhares de sistemas, descolados funcionalmente de um comando central ou único – federal e/ou estadual – recebendo repasses automáticos de recursos financeiros provenientes da União, cujas normas e diretrizes são, muitas vezes, respeitosamente ignoradas pelos agentes municipais.
(Talvez um bom exemplo dessa situação venha a ser o programa “MAIS MÉDICOS”: O SUS chegou à segunda década do século 21 com cerca de 800 municípios sem infraestrutura de saúde. E sem dispor de tecnologia assistencial ou de equipes de saúde, capazes de garantir mínimas condições assistenciais. A ausência de médicos nesses municípios levou a Frente Nacional de Prefeitos a criar, em 2013, um programa reivindicatório “CADÊ O DOUTOR?”, para pressionar as autoridades de saúde por uma solução. A resposta, solidária e imediata, do Governo Federal veio através do Ministério da Saúde, que frente à situação emergencial, com milhões de brasileiros sem assistência à saúde, optou pela criação do programa “Mais Médicos”. Abstraindo a discussão sobre a presença de médicos cubanos, revalidação de diplomas e formas de remuneração dos profissionais contratados, ocorreu um fato que passou praticamente despercebido: a seleção, contratação e pagamento do “Mais Médicos” tornou-se, em sua maior parte, responsabilidade do Ministério da Saúde. Quebrando, assim, a lógica da municipalização, um dos pilares básicos dos princípios organizacionais do sistema).
3.Lançando um olhar crítico à atual estrutura de organização operacional do SUS¸ percebe-se claramente as dificuldades criadas por concepções gerenciais democráticas e participativas, porém equivocadas, nas quais todos mandam e ninguém manda. Com sérias consequências na área assistencial, em todos os níveis de complexidade: atenção básica, nível intermediário e área hospitalar.
O que diz a Lei? Em seu capítulo III, a Lei 8080 fala da Organização, da Direção e da Gestão e prevê direção única para o sistema, exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: 1- no âmbito da União pelo Ministério de da Saúde; 2 – Estados e Distrito Federal pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; 3 – no Município pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.
Para articular essa complexa estrutura administrativa foram criadas Comissões Inter setoriais, no plano nacional, integradas pelos Ministérios e órgãos competentes e representantes da sociedade civil, subordinadas aos Conselho Nacional de Saúde. Esta fórmula gerencial repete-se nos níveis estadual e municipal. As comissões inter setoriais, previstas no art. 12 da Lei 8080 têm a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde e que envolvam outras áreas não compreendidas no âmbito do SUS.
Na esfera nacional foi criada a Comissão Inter gestores Tripartite e na esfera estadual a Bipartite. Constituem espaços intergovernamentais, políticos e técnicos nos quais ocorrem o planejamento, a negociação e a implementação das políticas de saúde pública. As decisões se dão por consenso (e não por votação) o que estimula o debate e a negociação entre as partes (sic). Estas Comissões vêm se constituindo em importantes arenas políticas de representação federativa(…) todas as iniciativas intergovernamentais de planejamento integrado e programação pactuada na gestão descentralizada do SUS estão apoiadas no funcionamento dessas comissões (sic). Estas comissões são amplas em sua composição:
CIT (Tripartite) Quinze (15) integrantes: cinco (5) indicados pelo Ministério da Saúde; cinco (5) pelo Conselho Nacional dos Secretários de Saúde/CONASS; cinco(5) pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde/CONASSEMS.
CIB (Bipartite), nível estadual, constituída, paritariamente, por representantes da Secretaria Estadual de Saúde e das Secretarias Municipais de Saúde, indicados pelo CONASSEMS. Incluem, obrigatoriamente, o Secretário de Saúde da capital do Estado.
4. A questão que se coloca é a seguinte: esse tipo de organização administrativa conseguiria dar conta de gerir um complexo sistema público de prestação de serviços de Saúde, minimamente eficiente e operacional, capaz de cumprir as normas (promessas?) claramente definidas na Constituição Federal: “Saúde direito de todos e dever do Estado?”
Uma interpretação possível dessas dificuldades operacionais do SUS – assumindo todo o seu grau de ousadia e possíveis equívocos – pode ser estabelecida ao se fazer um paralelo entre o raciocínio aplicado pelo geógrafo David Harvey, professor emérito de Antropologia e Geografia da City University of New York, ao analisar características de movimentos populares surgidos recentemente em diversos países, por geração espontânea.
Abro aspas para o professor Harvey: “ (…) O Occupy é um movimento que acabou influenciado por sentimentos anarquistas e autonomistas e isso resultou na falta de interesse em poder político strictu sensu. Era como se o movimento considerasse que o aparelho estatal não teria relevância. Havia essa insistência para que tudo fosse horizontal e não hierárquico”. (*)
É possível que os propósitos de descentralização e não-hierarquização do novo sistema de Saúde guardassem a influência de sentimentos não declarados (possivelmente jamais admitidos) de se criar uma estrutura operacional livre e “democrática”, num momento em que o país saia de um duro período autoritário, caracterizado por um Estado forte, excessivamente centralizado e de características ditatoriais.
Na prática, o SUS foi ao longo do tempo se transformando num corpo sem pés – amputados pelo subfinanciamento . E sem cabeça, que revelou-se natimorta e disfuncional, resultante de uma concepção administrativa absolutamente incapaz de criar uma gestão ágil e eficiente, capaz de responder aos desafios colocados pelos avanços irreversíveis do campo da saúde.
5. As expectativas de mudanças no funcionamento do sistema público de saúde brasileiro são mínimas, no entanto. Após 25 anos de existência, o SUS consolidou uma cultura institucional praticamente impermeável às transformações, mesmo as mais urgentes e necessárias. E com reduzida capacidade de auto – crítica e auto – avaliação.
Decorrido um quarto de século de existência, o SUS não conseguiu construir um modelo assistencial efetivo, capacitado a oferecer à população brasileira a Integralidade das ações de saúde – promoção, prevenção, tratamento, reabilitação – previstas em seu projeto de criação. Foi incapaz de perceber que a superlotação dos hospitais da rede pública não é uma questão a ser resolvida pelos próprios hospitais, mas decorre da inexistência de uma rede assistencial (bem) articulada e integrada por unidades capazes de garantir o acesso natural dos usuários ao sistema público. De resto, um direito que lhes é garantido pela Constituição.
Estas são reflexões a serem submetidas às autoridades de saúde de todos os níveis de competência, na expectativa de ajudar na reconstrução ( alguns apontam a reinvenção) do nosso Sistema Único de Saúde/SUS. Torna-se essencial trazer ao debate as causas e não somente as consequências dos problemas para que as soluções sejam encontradas. Importante, também, repensar – urgente – o esquema operacional, e os fundamentos da gestão do sistema. Seus objetivos e seus princípios permanecem atuais e intocáveis. Mas, para que o SUS continue como patrimônio do povo brasileiro, precisa mudar. E nesta mudança, colocar o usuário do sistema, e o seu direito a uma assistência digna e competente, como sua mais alta prioridade.
(*) Daniel Santini – Le Monde Diplomatique – Novembro, 2015 – pg. 17
Geniberto Paiva Campos é coordenador do Observatório da Saúde do Distrito Federal / Coordenador do Grupo de Estudos de Saúde do Movimento 2022 O Brasil que queremos